terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Crítica – Valor Sentimental

 

Análise Crítica – Valor Sentimental

Review – Valor Sentimental
É interessante como nossas memórias, nossas histórias pessoais e afetos estão muito conectados a objetos, a lugares. Coisas que quando retornamos a elas nos levam de volta a diferentes momentos de nossas vidas. Em Valor Sentimental o diretor Joachim Trier explora como a arte mobiliza essas relações com espaços, tempos, memórias e afetos.

Histórias que contamos

A narrativa acompanha Nora (Renate Reinsve, do excelente A Pior Pessoa do Mundo) uma atriz que tem uma relação distante com o pai, o diretor de cinema Gustav (Stellan Skarsgard). Um dia Gustav procura Nora dizendo que escreveu para ela o papel de protagonista em seu próximo filme e que ele será filmado na antiga casa da família em que Gustav cresceu e na qual criou as filhas. Nora recusa, afirmando que não consegue dialogar com o pai e Gustav segue para fazer o filme sem ela. Gustav contrata a jovem atriz estadunidense Rachel (Elle Fanning) para o papel que seria de Nora e consegue financiamento de uma plataforma de streaming. Quando Gustav e Rachel vão para a casa da família, o processo de ensaios mexe tanto com as memórias dele quanto com as das filhas Nora e Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas).

Ocasionalmente a trama também nos dá flashbacks da infância de Gustav na casa e da juventude da mãe dele. Esses momentos mostram como diferentes elementos da casa foram usados ao longo de várias décadas e adicionam camadas de significado a eles. Quando retornamos ao presente e vemos os personagens manuseando esses objetos, entendemos como aquilo representa uma conexão maior com seu passado, com memórias afetivas e com a própria história da família. É difícil assistir o filme e não pensar no conceito de “biografia cultural das coisas” de Igor Kopytoff, que versa sobre essas relações de apropriação e singularização de objetos, dotando-os de sentidos e conexões que eles não teriam originalmente.

A história dessa família e como Gustav usa a ficção para tratar os seus próprios problemas com a mãe e com as filhas nos lembra da natureza lacunar e fabular da memória. Lembrar não é algo objetivo. Existem lacunas, incompletudes que são preenchidas pela subjetividade dos indivíduos. Lembrar, nesse contexto, é um exercício de ficção, de construir uma narrativa e essas narrativas se abrem a disputas, como evidenciado no conflito entre Gustav e as filhas.

Redenção pela arte

Mais do que esse olhar sensível a respeito de memórias e narrativas familiares o que sustenta o filme é a construção dos personagens, tanto no nível do texto quando nas performances dos atores. A tensão latente entre Nora e Gustav é sentida na cena do café em que eles conversam sobre o filme. Gustav diz que a personagem que escreveu para ela irá levá-la ao estrelato, deixando subtendido que ele não aprova as escolhas artísticas da filha, algo que é imediatamente questionado por Nora, que diz que ele nunca assistiu uma peça inteira dela para dizer que ela é uma boa atriz. Ele devolve dizendo que tem um bom olho para atuação e que não assistiu até o fim porque não gosta de teatro, mais uma vez expressando sua desaprovação sem explicitamente dizer isso. Nora, por sua vez, menciona o sucesso de uma série de tv que fez e como a presença dela ajudaria o pai a conseguir financiamento, conotando o que ela pensa da carreira do pai e o estado em que ela se encontra (ao menos na perspectiva de Nora).

É um excelente momento de restrição por parte de Trier, tanto em texto quanto na condução da cena, confiando que o espectador vá perceber toda a sutil dinâmica passivo-agressiva latente entre esses personagens sem precisar dizer nada e momentos como esse são constantes ao longo da narrativa.

Gustav é um personagem fascinante porque Skarsgard dá a ele uma vulnerabilidade sincera em relação a tentar se conectar com as filhas ao mesmo tempo em que evidencia o ego inflado do cineasta e como ele aprecia toda mítica criada em torno de si, não estando disposto a sair de sua persona pública. Incapaz de se comunicar de maneira direta com as filhas, a arte é o modo que ele tenta transmitir a elas como se sente. É algo simultaneamente patético, afinal é um artista capaz de mover os sentimentos de multidões, mas é incapaz de falar sobre as próprias emoções, e também comovente no modo como ele tenta, à sua maneira, construir uma relação com as filhas.

É visível a comoção emocional de Gustav na cena em que ele senta com Rachel e a atriz começa a comentar do entendimento que ela tem de sua personagem (inspirada na mãe de Gustav) e como a fala dela faz Gustav reagir como se finalmente ele próprio entendesse melhor a mãe (e por tabela a relação com as filhas) naquele momento. É uma das cenas que evidencia como todo o empreendimento do filme é, no fim das contas, para ele, para que ele se reconecte com sua própria história e família. Ele quer entender porque sua mãe decidiu se suicidar quando ele era criança talvez na esperança de entender porque ele abandonou as filhas quando elas eram pequenas.

Do mesmo modo Renate Reinsve traz várias camadas a Nora. Alguém cuja fuga das próprias emoções foi o que provavelmente a impeliu a se tornar atriz, mas que também pode ser um problema para sua carreira. Digo isso porque o ataque de pânico que acompanhamos ela ter logo no início do filme parece se relacionar justamente com a dificuldade que ela tem em encarar de frente as próprias emoções, como a tensão antes de entrar no palco. Apesar de não tomar parte no projeto do pai, ela o acompanha no retorno à casa e na preparação de Rachel. Elle Fanning, por sinal, é ótima como uma atriz que busca se provar relevante, mas que não é adequada para o papel em que foi escalada. Ela luta para entender uma vivência da qual está muito distante e talvez não consiga ficar completamente imersa.

As transformações na casa ao final, reformada para filmar o “filme dentro do filme” simbolizam a mudança na relação entre Gustav e as filhas, um signo da reforma, da reconstrução dessas relações, ainda que reconhecendo toda dor que houve no percurso, fechando com a cena final do filme escrito por Gustav. É como se ao voltar para esse momento definidor de sua história pessoal e finalmente entendesse a mãe através das filhas ele conseguisse reparar aquilo que estava destruído. Um testemunho sensível e intenso do poder das artes em nos conectar com nossas emoções e de sua capacidade redentora.

 

Nota: 10/10


Trailer

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