Memórias do cárcere
A trama começa com uma família dirigindo à noite, um homem, uma mulher e sua filha pequena. O homem (Ebrahim Azizi) acidentalmente atropela um cachorro e para em uma oficina para consertar o carro. O mecânico, Vahid (Vahid Mobasseri), se assusta com a chegada do homem, reconhecendo o som da prótese que ele tem na perna como o mesmo do carcereiro que o torturou na prisão anos atrás. Vahid então decide seguir o homem e o sequestra na rua, levando ao meio do deserto para enterrá-lo vivo e se vingar do que foi feito com ele. O homem, no entanto, nega ser Eghbal, afirmando que perdeu a perna cerca de um ano atrás e mostrando a Vahid que suas cicatrizes de amputação são recentes. Em dúvida, Vahid procura outros companheiros de cárcere para se certificar de que aquele é mesmo Eghbal antes que possa completar sua vingança.
Os personagens não tem nenhum meio formal de comprovarem a identidade de Eghbal, já que estavam vendados na prisão, não viram o rosto dele, não tem como saber se Eghbal era seu nome verdadeiro ou tem qualquer documento relativo a esse período. É um lembrete de como o autoritarismo opera em um duplo movimento de violência. Além da violência direta da perseguição e tortura, há a violência do apagamento, da ausência. Como não há registro, não há como cobrar justiça depois, não há como comprovar o que aconteceu e contar essa história com consistência. A dor dessas pessoas é invisibilizada, varrida para debaixo do tapete.
Vahid chega a Shiva (Mariam Afshari), outra prisioneira política irnaniana, que está trabalhando como fotógrafa no casamento de Ali (Majid Panahi) e Goli (Hadis Pakbaten). Goli, por sinal, também foi alvo da tortura de Eghbal. Shiva diz reconhecer o cheiro de Eghbal no homem que Vahid capturou, mas tanto ela quanto Goli não dão certeza da identidade do homem. Shiva sugere procurarem Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr), seu antigo companheiro e também vítima do mesmo torturador. Hamid quer matar o homem, mesmo com os demais dizendo que não tem certeza plena de que é o torturador.
Vítimas algozes
O dia se torna noite conforme o grupo mantem o homem sedado e trancado em um baú enquanto debatem o que fazer com ele no meio do deserto. O cenário, um vazio povoado apenas por uma árvore, remete à seminal peça Esperando Godot de Samuel Beckett, algo que os próprios personagens reconhecem. O cenário não é a única semelhança com o texto de Beckett, já que o debate interminável e inconcluso dos personagens evoca também a circularidade absurda de Beckett na qual os personagens ficam no meio do nada esperando alguém e uma salvação que nunca chega. Aqui, os personagens debatem a respeito de uma certeza que nunca poderão ter.
Nesse sentido, a trama pondera os limites entre justiça e vingança. Conforme eles descrevem a violência que sofreram, incluindo torturas físicas, psicológicas e até violência sexual, é evidente que há uma necessidade de justiça, de punir quem fez isso com eles. Por outro lado, o texto aponta como o modo que eles mantem esse homem cativo, sem qualquer processo e baseado apenas em impressões circunstanciais, o espancam e o ameaçam não difere em nada da violência que sofreram. Apesar de uma demanda justa, os personagens se veem rebaixados ao mesmo patamar moral de seus torturadores.
Enquanto o tempo passa vai ficando evidente que eles não querem matar o homem, querem uma confissão, uma admissão de que o que aconteceu com eles foi real. Que eles foram vítimas de violência estatal. Querem também saber o motivo de Eghbal ter sido tão cruel com eles. A impressão de que Vahid não está mesmo disposto a matar se solidifica quando ele vai ao auxílio da família do homem depois de ver uma ligação da filha de que a mãe está passando mal e precisaria ir para um hospital. Apesar de protestos de Hamid, Vahid ainda tem alguma humanidade.
Mesmo quando os personagens conseguem
a esperada confissão, não encontram o alívio ou justiça que esperavam (assim
como em Esperando Godot a salvação
nunca chega) ao perceberem que do outro lado estava um ser humano tão quebrado,
falho e traumatizado como eles. O final deixa aberto para o espectador ponderar
se a decisão de Vahid e Shiva em nunca se tornarem algozes foi acertada ou não,
principalmente quando chegamos na cena final e vemos Vahid escutar novamente o
som dos passos de Eghbar se aproximando. O filme encerra sem que saibamos se é
de fato o torturador atrás de Vahid (e quais seriam suas intenções) ou se é
tudo imaginação do personagem. É um símbolo perturbador de como aquele trauma
estará sempre presente em Vahid e mesmo aquilo que ele pensou que lhe traria alívio
não surtiu efeito. Aquele passado, de um jeito ou de outro, sempre irá
assombrá-lo. Ele nunca terá paz.
Nota: 10/10
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