Júbilo coletivo
Na série, cientistas encontram uma mensagem vinda do espaço. A mensagem traz uma sequência de DNA. Eles sintetizam essa sequência e começam a experimentar em ratos, mas logo um pesquisador é mordido e sua primeira ação é infectar o maior número de pessoas possível. Descobrimos que todos os “infectados” se unem em uma espécie de mente coletiva que vive em plena harmonia, mas alguns humanos se mostram imunes ao processo. Carol Surka (Rhea Seehorn) é uma entre cerca de uma dúzia de pessoas ao redor do mundo que é imune à infecção da mente coletiva. O coletivo não parece inicialmente hostil, disposto a ajudar Carol e conversar com ela, mas a escritora desconfia deles, principalmente porque no processo de “união” sua companheira, Helen (Miriam Shor), morre.
Durante muitos anos o cinema hollywoodiano usou essas histórias de alienígenas que controlam corpos como metáforas anticomunistas ou histórias de invasões como uma metáfora para o perigo que os “outros” externos ao país representavam. A narrativa de Gilligan, no entanto, não vai por esse caminho. Sua consciência coletiva é extremamente solícita com Carol, se dispondo a atender todos os seus pedidos e devotada a agradá-la, embora tente convencê-la a participar da “união” uma vez que descobrirem um meio para contornar sua imunidade. De certa forma o coletivo soa muito mais como uma IA, na qual o usuário tem acesso imediato a todo o conhecimento acumulado da humanidade, tem respostas e soluções imediatas para qualquer problema e é sempre tratado como a pessoa mais importante. Na ótica de Gilligan, no entanto, isso não é uma utopia, mas algo tenebroso.
O problema, como a narrativa aponta, é que essa mente coletiva não é necessariamente capaz de aproximar pessoas. Os indivíduos funcionam menos um grupo organizado e coeso e mais se fossem células em um corpo, no qual nada é importante e tudo é descartável. Mais que isso, esse coletivo é incapaz de qualquer reflexão ou diálogo real. Isso é evidenciado na cena em que Carol conversa com um dos membros do coletivo sobre literatura. Quando pede a opinião sobre seus romances de ficção científica, tudo que Carol recebe é um compilado de opiniões de vários indivíduos que aquela pessoa acessa a partir dos pensamentos de vários indivíduos da mente coletiva. Ela reproduz essas opiniões feitas a priori da união, mas é incapaz de fazer um juízo próprio. Quando Carol pergunta se os livros dela são tão bons quanto as obras de Shakespeare o coletivo diz que ama todas as formas de expressão, não conseguindo pensar criticamente ou construir qualquer juízo comparativo, regurgitando ideias prontas sem conseguir criar nada.
A alusão à IA também ecoa no episódio que Carol pede uma granada e recebe uma, mas acredita ser de mentira ou um brinquedo até que o dispositivo realmente explode. Quando questiona porque o coletivo lhe daria algo tão perigoso, a única resposta que recebe é que ela pediu. Ou seja, o coletivo é tão focado em servir e obedecer que é incapaz de ponderar sobre a segurança dos outros ou a ética dos pedidos que atende, não muito diferente das IAs que ensinam usuários a como se suicidarem ou eventos similares.
Mundo canibal
A descoberta de que o coletivo se alimenta dos próprios mortos parece nos colocar em um terreno mais familiar da ficção científica, mas mesmo aí a trama consegue trilhar caminhos pouco usuais. A descoberta revela que como o coletivo é incapaz de interferir com qualquer forma de vida, mesmo as vegetais. É incapaz de colher uma fruta da árvore ou matar animais para comer, o que limita sua alimentação aos estoques disponíveis pré união ou se alimentar dos mortos. É mais uma instância que mostra como o coletivo não realiza ou cria nada, apenas reproduz e se apropria do que foi feito antes por pessoas reais. É mais um paralelo com a IA, já que o coletivo demanda uma grande quantidade de recursos para sobreviver e é incapaz de provê-los para si, sendo insustentável a longo prazo. A “união”, na prática, irá condenar a humanidade à extinção.
Esse lado mais macabro do coletivo é visto na abertura do episódio final da temporada no qual acompanhamos o cotidiano de uma vila peruana onde vive uma das poucas pessoas imunes à união. Com planos longos, típicos das séries de Gilligan, acompanhamos o cotidiano aparentemente pacato da vila até o momento em que a garota aceita participar da união a partir de um composto construído com suas próprias células tronco (algo que o coletivo só pode recolher com o consentimento da pessoa). No instante que ela se torna um com eles todo o senso de normalidade da vila é instantaneamente rompido, com todos roboticamente deixando o local enquanto abandonam as plantações e os animais criados no local. É tudo mecânico, desumano, desconectado do mundo ao redor deles a despeito do discurso de harmonia que o coletivo prega.
O passado de Carol contribui para um olhar mais apocalíptico em relação ao coletivo e para entendermos sua motivação de rechaçar tudo com tanta veemência. Ao sabermos que na juventude ela foi submetida a “terapia de conversão” por ser lésbica é um duro lembrete de como tentar forçar pessoas a se encaixarem a normas e abrirem mão de sua individualidade é um processo violento e cruel. Essas sensações são ampliadas pela dor genuína que Seehorn expressa ao narrar esses eventos.
Enxergar o outro
Embora seja uma trama apocalíptica, a série também encontra vários momentos de humor conforme explora a dimensão absurda de Carol ser a única pessoa em uma cidade vazia e ter todas as suas necessidades atendidas pelo coletivo. O zumbido dos drones que fazem entregas a ela ajuda a construir o senso de vazio da paisagem dela e as tentativas de Carol em interagir com os outros imunes ao redor do mundo também rende momentos divertidos, já que essas pessoas parecem encarar tudo com mais normalidade do que ela e alguns até tentam tirar proveito da situação para dar vazão as suas fantasias.
Como em outras produções de Vince Gilligan, a narrativa segue um fluxo bem deliberado, com muitos episódios iniciando com cenas longas, muitas vezes silenciosas, que parecem desconectadas da trama principal até que algo acontece para nos mostrar como tudo está conectado. Aqui esse tempo estendido serve para construir o senso de vazio desse mundo onde todos se tornaram um e não há a atividade constante das cidades.
Nos episódios finais a aproximação entre Carol e Zosia (Karolina Wydra), a pessoa escolhida pelo coletivo para ser a “acompanhante” de Carol nesse novo mundo, faz um último paralelo com a relação entre pessoas e IA que é o engano de pensar que há uma conexão afetiva real com esse tipo de entidade. A cena do penúltimo episódio em que Carol pede a Zosia para contar algumas memórias pessoais dela ou o momento em que Carol se dá conta de Zosia reconstruiu a lanchonete em que escreveu seu primeiro livro entende muito bem o que nos faz nos conectarmos com outras pessoas é que quando sentimos que estamos sendo vistos pelo outro de maneira que ninguém mais vê, que o outro entende ou percebe algo em nós que não queremos ou relutamos em compartilhar e ainda assim esse outro aprecia isso em nós.
Ao final do penúltimo episódio conforme Carol pede a Zosia que fale no singular “eu” ao invés de “nós” parece que ela está conseguindo separar o indivíduo do coletivo, mas tudo desmorona no final. O momento em que Zosia insiste em convidar Carol para a união e Carol se dá conta de que eles não precisam do consentimento dela para coletar suas células-tronco por conta dos óvulos que Carol congelou anos atrás lembra a protagonista de que a conexão entre ela e Zosia nunca foi real. Sempre foi o simulacro de uma conexão humana de um aparato que aprendeu a emular a conduta humana como um meio de atingir sua diretriz principal, nesse caso a de convencer Carol a se unir. O desfecho dessa primeira temporada deixa um instigante gancho conforme Carol finalmente decide se unir ao paranoico Manousos (Carlos Manuel-Vesga) para deter o coletivo.
Usando sua trama de ficção
científica para refletir sobre os dilemas contemporâneos da humanidade, Pluribus se sustenta pela complexidade
que traz para suas ideias e por uma excelente performance de Rhea Seehorn.
Nota: 10/10
Trailer

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