Disputa doméstica
A narrativa acompanha como uma briga entre vizinhos se transformou em tragédia. Durante quase dois anos em um subúrbio na Flórida a idosa Susan Lorincz entrou em constantes brigas com os vizinhos por conta das crianças que brincavam na região. Susan sempre reclamava que as crianças estavam invadindo sua propriedade, mesmo quando elas estavam em um terreno próximo que não fazia parte de sua casa. A idosa constantemente atacava as crianças, o que a colocava em atrito com os pais, resultando em inúmeras chamadas para a polícia de ambos os lados. A disputa escalou até o dia em que Susan atirou e matou Ajike Owens, uma vizinha negra que foi bater à sua porta para tirar satisfação depois que Susan teria tomado um tablete de seus filhos.
Todo o documentário é narrado a partir de imagens das câmeras corporais dos policiais que responderam as ocorrências ao longo dos anos. O documentário se mantem fiel a esse formato durante praticamente toda a sua duração, evitando reconstituições ou entrevistas feitas após o crime. Só temos algumas imagens de telejornais que ajudam a situar a repercussão.
A ideia parece se ater aos fatos do crime, mostrando o que foi registrado pelas autoridades sem inserir interpretações ou dar vazão à subjetividade dos envolvidos. Lógico, isso não significa que o filme não se posicione, afinal ela seleciona o material que vai para o corte final e em alguns letreiros é visível a posição do filme em relação à todos aqueles fatos. A escolha, no entanto, permite que o espectador tenha acesso direto aos fatos, sem que eles tenham sido interpretados ou mastigados pelo filme, e possa tomar suas conclusões.
É a principal força da produção, mas também sua fraqueza. Como a diretora se atem fiel ao seu dispositivo escolhido isso significa que boa parte da produção é marcada por imagens que não foram pensadas para a posteridade ou para um produto audiovisual. Afinal, para os policiais boa parte dos eventos eram só ocorrências cotidianas, sem nada especial. Daí que muitas cenas desses policiais ouvindo pessoas da vizinhança, pais, crianças e as próprias Susan ou Ajike em enquadramentos que as vezes não mostram nem o rosto da pessoa com quem estão conversando ou são longas conversas que se estendem até chegar em um ponto em que são relevantes para a história, o que faz muitas cenas soarem monótonas.
Encastelamento tacanho
Ao longo do documentário, as imagens mostram como Susan era intolerante, sempre implicando com as crianças da vizinhança mesmo quando elas não estavam próximas de sua propriedade ou fazendo qualquer barulho além do razoável. Vemos inclusive como ela é ainda mais agressiva em relação às pessoas negras da vizinhança. As imagens da polícia mostram como todo o bairro não tinha qualquer reclamação das crianças da região nem via qualquer grande incômodo com as brincadeiras exceto por Susan.
O crime em si acaba servindo como metonímia para analisar toda a retórica de encastelamento que sustenta leis de stand your ground que estados como a Flórida tem e que basicamente autorizam um cidadão a matar qualquer pessoa que ela sinta que pode ser uma ameaça a sua vida. Não precisa que o alvo seja uma ameaça ou esteja de fato armado, basta que o assassino seja convincente em construir uma narrativa de que estava temendo pela própria vida e pode cometer assassinato com impunidade.
O assassinato de Ajike revela a face tacanha desse modo de pensar, no qual uma mulher tira a vida de uma mãe de família, deixa seus filhos órfãos e traumatiza toda uma vizinhança simplesmente porque se sentia no direito de matar alguém porque lhe incomoda ou porque não gosta. As imagens de interrogatório da polícia revelam a desfaçatez de Susan, que tenta pintar Ajike como o clichê da mulher negra agressiva e descontrolada, se comportando como se tivesse a certeza de que fosse sair impune daquele crime. O momento em que ela chora e se desespera ao saber que será indiciada pelo crime, se recusando a ir voluntariamente com os policiais, demonstra como ela provavelmente nunca pensou que fosse de fato responder pelo crime.
Em se tratando dos Estados Unidos
e ainda mais do estado da Flórida a impunidade está sempre à espreita e o filme
observa como essa lógica das leis stand
your ground servem de incentivo para que pessoas cometam ato de violência
por conta da perspectiva de impunidade. Seria possível tratar essa questão com
um olhar mais abrangente, mostrando números, estatísticas que justificam a
visão de que esse tipo de legislação é nociva, mas essa escolha, ainda que
convincente do ponto de vista racional, talvez não consiga dar a dimensão do
impacto real que esses atos de violência tem nas pessoas e comunidades que o
sofrem. Ao optar por um microcosmo do problema o filme nos faz sentir todo o peso
e o impacto que o incentivo à violência, principalmente por um viés racista
(algo que o filme acaba explorando pouco e deixando implícito em muitos
momentos), tem na vida das pessoas. Ao nos fazer experimentar essas vivências o
filme explicita como tudo isso é revoltante e inaceitável.
Nota: 7/10
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