Rivalidade feminina
A trama gira em torno de Elvira (Lea Myren), uma jovem que sonha em se casar com o príncipe, mas cuja família não vai bem financeiramente. Sua mãe, Rebekka (Ane Dahl Torp) se casa novamente com um aristocrata que parece ter dinheiro e se muda para a Suécia com Elvira e a filha mais nova, Alma (Flo Fagerli). Lá elas conhecem Agnes (Thea Sofie Loch Næss), a bela filha do novo padrasto. Agnes age como uma garota mimada, julgando Elvira pela aparência e menosprezando a nova irmã. É aí que a protagonista descobre que o padrasto não tinha dinheiro e casou com Rebekka por interesse. Ele morre pouco tempo depois, deixado a família cheia de dívidas. Como Alma ainda é muito jovem, o plano de Rebekka é arrumar um marido rico para Elvira, salvando a família. Ela espera conseguir no baile oferecido pelo príncipe, mas para isso precisará fazer algo à respeito da aparência de Elvira, em especial quando ela é ofuscada pela naturalmente bela Agnes.
Por influência da mãe Elvira se submete a procedimentos cosméticos agressivos como uma cirurgia no nariz, aparelhos nos dentes e outras coisas. Durante a primeira metade do filme a protagonista fica com partes do rosto cobertas enquanto se recupera das cirurgias. Há uma clara oposição entre Elvira e Agnes que vai além das aparências. Elvira é ingênua, ainda virgem, e carrega consigo um ideal romantizado de casamento, sonhando com um príncipe encantado. Agnes, por sua vez, é bem mais pragmática. Apesar de manter um caso com o cavalariço da propriedade do pai e nutrir sentimentos por ele, Agnes sabe que seu corpo e sua beleza são os únicos bens que tem, decidindo manter o romance em segredo enquanto se prepara também para o baile do príncipe, já que casar com ele seria sua chance de se emancipar da madrasta. É inclusive pela descoberta que Agnes não é mais virgem que Elvira subjuga a meia-irmã, revelando o segredo para a mãe, que transforma Agnes em uma criada, já que sem sua “virtude” ela não teria mais como conseguir um marido nobre.
A guinada na dinâmica também muda nossa relação com as personagens. Se antes Agnes soava como uma patricinha mimada e sonsa, conforme Elvira passa a maltratá-la é difícil não sentir pena dela. A narrativa, no entanto, não vilaniza nenhuma das duas, entendendo que é a lógica masculina de objetificação da mulher, de valorizar apenas a beleza e do casamento ser o único meio de uma mulher garantir sustento que as coloca em posição de rivalidade conforme ambas disputam o príncipe.
Beleza sofrida
Para ter uma chance com o príncipe e por não ser considerada naturalmente bela, Elvira decide usar tudo a sua disposição para se encaixar nesses padrões de beleza. O filme mostra de maneira bastante crua a agressividade dos procedimentos aos quais ela se submete, caminhando para o horror corporal ao mostrar de maneira explícita o cirurgião quebrando o nariz dela com diferentes ferramentas ou costurando cílios maiores em suas pálpebras. Sentimos a dor de Elvira a cada batida em seu nariz tanto pela violência gráfica da cena quanto pelos urros de dor extrema da atriz Lea Myren durante todo o processo. São elementos visuais que mostram como as mulheres sofrem para se encaixar em padrões impostos.
Um sofrimento que não é apenas físico, mas emocional, já que Elvira resolve ir a extremos para conseguir a aparência que deseja, inclusive sendo advertida por Alma da relação pouco saudável que desenvolve com o próprio corpo. Isso é evidenciado na cena das duas em que Elvira revela que conseguiu um ovo de tênia e que pretende ingerir o parasita para que possa emagrecer e continuar comendo. Uma decisão que parece dar certo inicialmente, já que ela emagrece, mas que causa vários problemas de saúde mais adiante. O extremo de seus sentimentos para se encaixar aparecem no final quando ela pega o sapato de Agnes e, ao ver que seu pé não cabe, corta os próprios pés para se encaixar no padrão que o príncipe procura. Aliás, o príncipe é construído como um babaca machista, que humilha Elvira na primeira vez que a vê por conta de sua aparência e nem assim ela abandona a visão romantizada que tem dele, ao contrário de Agnes que tem motivos pragmáticos para casar com o monarca.
É difícil não pensar em A Substância (2024) conforme acompanhamos a história de Elvira, já que é também uma história sobre alguém que se destrói para atender a uma demanda masculina de beleza e juventude. Embora aqui as coisas não fiquem tão insanas nem tenham o arrojo visual da produção comandada por Coralie Fargeat.
Considerando a lógica masculina que governa o universo da trama, não é à toa que única pessoa que ajuda Elvira é a irmã, com a nauseante cena em que Agnes dá a Elvira o medicamento para expelir a tênia simbolizando o momento em que a protagonista coloca para fora tudo de tóxico (literal e metafórico) que a prejudicava. O desfecho das irmãs lembra como apenas a cooperação feminina consegue romper o ciclo de abuso e exploração dos corpos femininos. Uma cena pós-créditos reforça isso ao sugerir que Agnes não conquistou a emancipação que esperava com seu casamento, ao mostrar que a única coisa com a qual ela tinha algum vínculo emocional foi deixada para apodrecer em sua antiga casa.
Mesmo tocando em temas já
recentemente explorados no cinema, inclusive com a abordagem do horror
corporal, A Meia-Irmã Feia envolve pela sua capacidade de reimaginar a conhecida fábula da Cinderela e
pela crueza com a qual mostra a mutilação corporal a qual sua protagonista se
submete.
Nota: 7/10
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