quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Rapsódias Revisitadas – Um Tiro na Noite

 

Análise – Um Tiro na Noite

Crítica – Um Tiro na Noite
Dirigido por Brian De Palma, Um Tiro na Noite foi lançado em 1981 e constrói uma narrativa de suspense que funciona como uma reflexão sobre a importância do som no cinema, lembrando como a dimensão é tão responsável pela construção de elementos emocionais, sensoriais e narrativos quanto a imagem. É também um filme que sabe muito bem manejar a tensão do espectador.

Ruídos e sussurros

Jack (John Travolta) é um técnico de som que vem trabalhando em produções B de terror em Hollywood. Uma noite ele está em um parque capturando sons ambientes quando grava um carro perdendo o controle e mergulhando em um lago. Jack salva uma mulher, Sally (Nancy Allen), que estava no banco do carona, mas não consegue salvar o motorista. Na delegacia, descobre que o motorista era o governador, prestes a ser candidato à reeleição, e que ele não sobreviveu. A polícia enquadra o evento como um acidente, afirmando que o carro perdeu o controle ao furar um pneu, mas Jack suspeita de assassinato, já que em sua gravação ele capta o som de um tiro antes do carro perder o prumo. O problema é que ninguém acredita em Jack.

Há um clima crescente de paranoia, no qual o protagonista não sabe em quem acreditar e nós, espectadores, temos a impressão de que há um acobertamento de crime em curso. A tensão se eleva a partir do momento em que a trama passa a nos dar mais informações do que os personagens. Deixando evidente para nós o apuro em que se encontram, mesmo que eles próprios não saibam. É algo que cria uma sensação de impotência conforme vemos os personagens caírem na teia do assassino Burke (John Lithgow), sem que eles tenham a menor noção do perigo. Nós temos e, justamente por isso, ficamos tensos. É um tipo de manejo de tensão que cineastas como Alfred Hitchcock dominavam com maestria e que De Palma conduz aqui com muita segurança.

Um exemplo disso é a cena em que Burke tenta estrangular uma mulher no banheiro. Nós o vemos entrar na cabine ao lado da qual o alvo se encontra, o vemos subir entre a divisória das cabines e abaixar os braços com o garrote em mãos, tudo isso enquanto seu alvo está alheio às movimentações do assassino. Esse tipo de discrepância entre o que nós sabemos e o que os personagens contribui para o clima de tensão da maioria das cenas. O suspense também vem da ambiguidade dos personagens. Nancy inicialmente parece apenas estar no lugar errado, na hora errada, com o homem errado, mas quanto mais Jack investiga, mais descobre que ela pode não ser tão inocente. Outras figuras ao redor do protagonista também demonstram segundas intenções ao ponto em que fica difícil saber em quem confiar.

Som guia

O filme usa sua trama de conspiração para refletir sobre a natureza do som no audiovisual. O momento em que Jack escuta o áudio gravado da noite fatídica e é capaz de remontar cada evento, lembra como o som por si só é capaz de contar uma história. Uma constatação que soa óbvia hoje, mas se voltarmos à época em que a projeção síncrona de som e imagem no cinema se tornou possível, encontramos muitos detratores do uso do som com a imagem. Muitos diziam que o som seria redundante, que apenas repetiria o que a imagem já comunicaria por conta própria, enquanto outros afirmavam que removeria a universalidade da imagem.

Aqui, Brian De Palma nos mostra como o som não apenas acompanha ou redunda a imagem, ele adiciona uma camada expressiva (de significado, de emoção, de sensação, etc) que a dimensão visual sozinha não seria capaz de transmitir. Sem o som do tiro gravado por Jack, seria fácil pensar que o carro apenas estourou um pneu e perdeu o controle, mas é apenas o som que transmite o significado de que um crime aconteceu ali. A imagem não dá conta disso sozinha. Autores como Michel Chion defendem o potencial expressivo do som e o que De Palma faz aqui ilustra muito bem a noção de “valor acrescentado” do som postulada por Chion.

Se em Dublê de Corpo (1984) Brian De Palma explorou a noção de vouyerismo do cinema ao mostrar que há sempre alguém observando, aqui ele nos mostra também como é sempre possível alguém estar ouvindo. É através do som de conversas telefônicas interceptadas que Burke monitora Jack, Sally e os outros. O som é o condutor dos principais eventos da trama, a força que move os diferentes personagens.

Não que a dimensão visual não seja explorada pelo filme. Como em outros suspenses conduzidos por Brian De Palma a fotografia investe em contrastes entre luz e sombra que criam espaços lúgubres que remetem ao noir e ao expressionismo alemão. O uso de cores intensas na iluminação, em especial tons de vermelho, contribuem para uma atmosfera de que tudo aquilo se passa em um delírio febril, em uma realidade além da nossa, deturpada pelas condutas das pessoas sinistras que transitam por ela. Apesar disso, o foco do filme é de fato na natureza expressiva do som e sua capacidade expressiva é capaz de fixar sentidos ou emoções, algo evidenciado pelo desfecho de Jack, assombrado pelo som de grito que decide usar no filme de terror no qual estava trabalhando.


Trailer

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