Nem ganhar ou perder
Ao longo de três episódios a série tenta mostrar como o reality se vendia como um estímulo a uma vida saudável e à perda de peso em um país com crescentes taxas de obesidade e sedentarismo. A série confronta essa proposta com a realidade do programa, no qual pessoas obesas eram colocadas diante de treinadores cujos programas de exercícios físicos eram pouco adequados para pessoas obesas e sem condicionamento físico, além do fato de que esses treinadores constantemente humilhavam e criticavam os participantes. Isso, somado ao fato de que os participantes eram encorajados a comer o mínimo de calorias possível enquanto mantinham uma rotina diária de várias horas de exercício mostra como a perda rápida de peso que era exibida pelo programa era pouco saudável.
Além de serem encorajados a comerem o mínimo possível, os participantes eram submetidos a provas de “tentação” nas quais eram colocados em uma sala cheia de guloseimas e encorajados a comerem o maior número de calorias possível para ganhar prêmios tipo receber uma visita da família. Essa dicotomia entre um estímulo para não comer ao mesmo tempo de outro para comer contribui para que tanto os participantes quanto os espectadores criem uma relação problemática com a comida. Isso, somado à maneira problemática com a qual constrói a rotina de exercícios dos participantes, faz o programa ser mais um estímulo a distúrbios alimentares e práticas pouco saudáveis com potencial de vários danos físicos e psicológicos do que uma estímulo à melhorias na saúde da população.
Essas provas de “tentação” também servem para reforçar estereótipos sobre pessoas obesas, remetendo à noção de que pessoas gordas são assim porque são incapazes de se controlar perto de comida. O programa como inteiro demonstra um espírito de ridicularizar seus participantes pelo peso, por exemplo adicionando um efeito de tremor na câmera quando alguém cai durante um exercício, como se a queda da pessoa tivesse causado um terremoto. A natureza das imagens revela um olhar de bastante julgamento, tratando seus participantes como figuras aberrantes que deveriam ser humilhadas por não se adequarem a padrões ao invés de uma discussão mais saudável sobre emagrecimento e peso. É um olhar que ainda está presente em programas como Quilos Mortais ou Acumuladores que estão mais focados em sensacionalismo e em tratar as pessoas filmadas como aberrações de circo do que em verdadeiramente provocar uma transformação na vida delas ou abordar o tema com responsabilidade.
Verdadeiros perdedores
Se as imagens do programa e os depoimentos de ex-participantes já nos dão uma medida consistente de como a produção era tão problemática e não deveria ir ao ar, as coisas se tornam ainda mais revoltantes nas entrevistas com as pessoas que trabalhavam na produção do programa, em especial os dois produtores e um dos treinadores, Bob Harper. A outra treinadora do programa, Jillian Michaels, se recusou a falar ao documentário, compreensível considerando a conduta reprovável dela ao longo do programa, chegando inclusive a dar aos participantes comprimidos da cafeína para acelerar o emagrecimento deles, sendo que isso era proibido pela equipe médica e pelas regras do reality.
Harper fala como um sociopata, desprovido de qualquer empatia pelos participantes e não exibindo qualquer remorso pela falta de profissionalismo, pelas práticas pouco saudáveis que seus exercícios promoviam ou pelo assédio moral que fazia. Mesmo quando confrontado com imagens de sua conduta ele se defende dizendo que era para fazer o programa ser divertido ou que era uma maneira de estimular os participantes. Ele inclusive critica o médico responsável pelo programa, Robert Huizenga, por supostamente interferir nos exercícios e dietas pouco saudáveis que ele impunha aos participantes, dizendo que o médico era um ególatra com complexo de deus, sendo que o médico estava correto. Como um perfeito narcisista, ainda que não tenha qualquer empatia pelos participantes do programa, Harper cobra empatia para si mesmo ao narrar como seu próprio programa de exercícios o levou a um infarto ainda jovem (e nem assim ele faz qualquer autocrítica) e, num ato de extrema hipocrisia, agradece aos médicos que salvaram sua vida quando minutos antes criticou o médico do programa por fazer o mesmo pelos participantes.
Os dois produtores são igualmente escorregadios, sempre dizendo que apesar das falhas o programa ajudou a pautar uma conversa pública sobre obesidade e ajudou a combatê-la, ignorando que a grande maioria dos participantes voltou a ganhar peso depois do programa e que a obesidade só aumentou desde que o programa estreou, revelando como sequer a defesa do “serviço público” se sustenta. Quando questionado sobre as pílulas de cafeína, um dos produtores simplesmente menospreza a acusação dizendo que não eram substâncias ilícitas, como se isso as tornasse livres de risco.
Em outro momento, quando perguntado sobre a falta de suporte para os participantes pós programa, um dos produtores responde que não havia dinheiro para isso, sendo que no auge do sucesso a marca chegava a rendimento próximo do bilhão, sendo difícil crer que eles não poderiam dar qualquer auxílio. Ao ser perguntado sobre o que faria diferente se fizesse novamente o programa, um dos produtores chega à cretinice de dizer que a única mudança que faria seria não dar prêmio em dinheiro, que o emagrecimento seria prêmio o suficiente. Na visão dele, os participantes deveriam dar graças aos céus por terem recebido a oportunidade de participar do programa e aceitar qualquer coisa que lhe dessem enquanto eles, os produtores, ficam cada vez mais ricos explorando a imagem daquelas pessoas sem sequer dividir parte dessa riqueza na forma de prêmios.
O único que exibe algum traço de humanidade é o médico Robert Huizenga. Em vários momentos ele declara oposição aos métodos dos treinadores e de como ele tentou criar diretrizes rígidas para que os exercícios ou dietas não fossem prejudiciais aos participantes, também se negando a promover suplementos e outros produtos com a marca do programa ao longo de sua exibição. Apesar de uma visão bem fundamentada sobre como um processo de emagrecimento saudável deveria acontecer, o fato dele continuar na produção mesmo quando seus conselhos eram ignorados indica um certo grau de conivência, já que ninguém o obrigava a continuar trabalhando ali. Por outro lado, considerando as várias ocorrências de saúde que aconteceram em temporadas anteriores, talvez o estado de saúde de certos participantes teria sido muito pior sem um médico que ao menos tinha algum grau de cuidado pelos participantes.
Estilisticamente é um documentário bem padrão, com entrevistas e imagens de arquivo, não tendo qualquer esforço criativo na maneira como estrutura sua história ou articula as imagens. Algumas entrevistas também carecem de confronto. Seria interessante se, diante das declarações dos produtores de que ajudaram a combater a obesidade, eles fossem confrontados com os dados de que o problema só aumentou. Por vezes o documentário é ele próprio sensacionalista no tratamento da questão, pesando a mão no modo como tenta mobilizar a nossa indignação.
Ainda assim, Magreza na TV: A Verdade de The Biggest Loser é importante no modo
como analisa os sentidos construídos por esses programas de emagrecimento
televisivo, desvelando que por trás do discurso sobre saúde há, na verdade, uma
reprodução de preconceitos e a divulgação de condutas que são mais danosas do
que benéficas.
Nota: 6/10
Trailer
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