terça-feira, 23 de setembro de 2025

Crítica – Uma Batalha Após a Outra

 

Análise Crítica – Uma Batalha Após a Outra

Review – Uma Batalha Após a Outra
Quando escrevi sobre Vício Inerente (2014) mencionei que o diretor Paul Thomas Anderson tinha feito um “noir para maconheiros”. Agora, com este Uma Batalha Após a Outra o diretor parece ter feito um “thriller de conspiração para maconheiros”. Curiosamente os dois filmes são adaptações de romances do Thomas Pynchon cujas narrativas se constroem em cima de personagens delirantes e alguma medida de desencanto político.

A luta não para

A narrativa acompanha Bob (Leonardo DiCaprio), que durante muitos anos participou de grupos revolucionários que lutavam por direitos civis nos Estados Unidos. Seus dias de luta terminaram depois que ele teve uma filha com Perfidia (Teyana Taylor), uma das líderes do grupo revolucionário que participava. Perfidia quis continuar na luta e Bob se afastou de tudo. Dezesseis anos depois Willa (Chase Infiniti) já é uma adolescente e vive com o pai em uma pequena cidade. Bob ainda teme que as autoridades possam estar no seu encalço e mantem uma vida discreta junto da filha. Os temores de Bob se confirmam quando o coronel Lockjaw (Sean Penn) chega com sua força-tarefa na cidade procurando os dois. No passado o coronel perseguiu Bob e Perfidia, chegando a se envolver com a revolucionária, então a caçada é pessoal para o militar.

O primeiro terço do filme se dedica a mostrar o passado revolucionário de Bob e como ele chegou à situação atual com a filha. Esse início tem muitas similaridades com o clima de Vício Inerente, em especial o crescente desencanto em relação a construir uma mudança real nos Estados Unidos e como esses sonhos de uma sociedade melhor, de derrubar o autoritarismo e preconceito, são desfeitos pela realidade política do país. O início desenvolve como Bob se tornou um drogado recluso que perdeu praticamente tudo que lhe era importante e lhe dava propósito. Uma sombra de si mesmo que tem na filha a única razão para continuar seguindo adiante.

A partir do momento em que Lockjaw ataca a cidade, porém, o tom muda conforme Bob é forçado a sair de sua inércia e precisa se mover, mesmo em meio a seu torpor de drogas, para ficar em segurança e proteger a filha. Conforme transita pelo caos da cidade, Bob percebe como as várias comunidades de minorias e de imigrantes encontraram meios para sobreviver à opressão das autoridades que os veem como ameaças mesmo que estejam apenas vivendo suas vidas.

Longe de seu auge como revolucionário e com anos de drogas fritando seu cérebro, é graças à ajuda que recebe dos vários membros da comunidade que Bob vai conseguindo encontrar meios de lidar com a situação. Leonardo DiCaprio é ótimo em evocar a paranoia constante e os maneirismos de hippie velho de Bob, que aos poucos recupera sua confiança e energia conforme vê que ainda existem pessoas tentando fazer a diferença. Cada um em sua maneira, em sua luta, a cada dia.

Por não ser exatamente um hábil herói de ação, a fuga de Bob acaba tendo um viés de comédia conforme ele lida com a dificuldade de lembrar senhas para entrar em contato com colegas revolucionários ou sua falta de capacidade física faz certas ações darem errado. Um dos momentos mais divertidos do filme é quando ele liga para uma espécie de call center revolucionário e não consegue lembrar a senha para levar a conversa adiante, entrando em uma longa tirada na qual xinga seu interlocutor e exige falar com o supervisor dele como se fosse um cliente insatisfeito. Em outro momento ele tenta acompanhar um grupo de jovens em uma fuga pelos telhados da cidade, mas enquanto os garotos se movem com agilidade e movimentos de parkour, Bob se arrasta e tropeça ao longo do caminho até que um salto dá terrivelmente errado.

Militarismo agressivo

Em oposição a Bob está o coronel Lockjaw, um militar agressivo, preconceituoso, que vê imigrantes e minorias como ameaças a serem exterminadas e sonha em entrar para uma cabala secreta de supremacistas brancos. O problema é que ele é um hipócrita, já que se apaixonou e teve um caso com Perfidia no passado, o que pode minar suas chances de ser aceito entre os racistas.

O filme mostra as inúmeras camadas de pequenez moral e humana do militar. Desde sua hipocrisia no discurso racista, passando pelo seu desejo de ser aceito por uma elite preconceituosa que nunca o verá como igual, no máximo como uma ferramenta, além de seu ímpeto de constantemente projetar uma imagem de masculinidade tradicional para disfarçar suas inseguranças e vulnerabilidades. Isso é pontuado por Willa, que em uma cena questiona Lockjaw por usar camisas excessivamente apertadas ou saltos nas botas, tirando o militar do sério.

É um personagem que poderia facilmente ser uma caricatura rasa, mas o texto e a interpretação de Penn o dotam de uma vulnerabilidade que o faz soar humano sem perder de vista suas facetas mais monstruosas. Lockjaw é o tipo de sujeito que não percebe que não é muito mais do que um instrumento nas mãos dos poderosos, algo evidenciado na cena em que é levado pela entrada dos fundos de um evento chique para falar com os líderes do tal grupo secreto. Eles têm um interesse no que o coronel pode fazer por eles, mas não o querem circulando em seus espaços ou serem vistos com ele. Se não tivesse o pensamento tão dominado pelo ideal racista e excludente que representa talvez Lockjaw fosse capaz de perceber que está mais próximo das pessoas que persegue do que das que obedece. Algo que o mercenário indígena que trabalha para o coronel acaba percebendo lá perto do final.

Rede de cooperação

É até difícil destacar o trabalho individual de alguém quando todo o elenco entrega performances memoráveis. Teyana Taylor aparece relativamente pouco, mas domina cada cena em que aparece como Perfidia, chamando atenção com a ferocidade indomável da revolucionária, cuja presença impositiva é capaz de inspirar e seduzir as pessoas ao seu redor, não à toa que até um inimigo como Lockjaw falha em resistir aos seus encantos. Poderosa, independente e articulada, a presença de Perfidia é sentida durante todo o filme, mesmo que ela só apareça nos primeiros minutos.

Benicio del Toro, por sua vez, interpreta Sergio, o professor de artes marciais de Willa, que se revela o líder de um movimento secreto que trabalha para garantir a segurança de imigrantes mexicanos cujo trabalho acaba reacendendo a chama revolucionária de Bob. A postura calma, mesmo diante do caos que os envolve, serve de contraponto divertido para a bad trip aloprada que guia a conduta de Bob. Chase Infiniti faz Willa como uma garota que herdou a força e a autoridade da mãe, sendo capaz de si impor mesmo diante de adversários como Lockjaw e controlar a situação. Seu trabalho, porém, não perde de vista que Willa é só uma menina jogada no meio de um conflito armado, visível na cena em que ela chora na cama do convento em que é deixada por Deandra (Regina Hall), como se Willa estivesse contendo o choro desde o momento em que foi resgatada na escola e só ali, quando estava sozinha se permitiu ser vulnerável e agir como uma garota assustada e longe do pai.

Movimento incessante

Apesar de longo, com duas horas e quarenta de duração, quase não senti o tempo passar durante a sessão. Isso se deve principalmente pelo senso de energia e movimento que Anderson imprime aos eventos, principalmente a partir do ataque à pequena cidade de Bob. A câmera acompanha personagens como Bob e Sergio caminhando em meio ao caos, com pessoas correndo nas ruas e Sergio coordenando uma fuga de imigrantes por túneis secretos enquanto tenta ajudar Bob, com planos amplos e com poucos cortes, imprimindo esse sentimento de um movimento que não para, de um deslocamento constante, de uma ação que não pode cessar caso contrário aquelas pessoas serão presas ou mortas.

Não lembro de outro filme do Paul Thomas Anderson com tanta ação e cenas de perseguição. Claro, isso aqui não é um filme do James Bond ou qualquer coisa assim, mas considerando o tipo de produção que o diretor faz, o senso de escala aqui, com cenas cheias de figurantes e conflitos violentos entre polícia e manifestantes enquanto os protagonistas correm em meio a todo esse caos. Anderson também conduz de maneira eficiente perseguições de carros, em especial durante o clímax, quando usa o terreno, como os aclives e declives da estrada, para criar suspense conforme alguém perde de vista o veículo que está perseguindo ou que o persegue por breves segundos na linha do relevo.

Esse senso de movimento também é sentido na trilha musical, com notas de piano tamborilando sem parar como os passos constantes dos personagens ou refletindo a inquietação da mente entorpecida de Bob. Essa música instrumental soa menos como algo orquestrado e mais como se estivéssemos ouvindo notas improvisadas, se movendo quase que de maneira caótica, ressaltando o caos que cerca aquelas pessoas e também o estado de confusão e pouca clareza mental de Bob.

É curioso como apesar de ter sido filmado há cerca de um ano, o filme parece ter sido construído de olho no momento atual dos Estados Unidos e seu crescente de autocracia e perseguição a minorias, com imigrantes sendo detidos no meio da rua por agentes a paisana que nunca se identificam ou informam que infração a pessoa cometeu para justificar as detenções. Aqui, Anderson faz uma síntese muito consistente do passado e presente dos Estados Unidos entendendo a intolerância presente nos centros de poder, o desejo de mudança que mobiliza as tentativas de revolução e o senso de comunidade que faz pessoas comuns criarem maneira de resistir às opressões cotidianas, mesmo sabendo que todo dia trará uma batalha após a outra. Se o início aponta para um desencanto, ao longo do filme há um despertar relativamente otimista para o fato de que não se pode parar de lutar.

 

Nota: 10/10


Trailer

Nenhum comentário: