Olhe para o céu
Na trama, Clark Kent (David Corenswet) já é Superman há alguns anos e agora lida com uma crise da confiança do público em si depois que ele impede uma guerra entre dois países distantes. Lex Luthor (Nicholas Hoult) aproveita para minar ainda mais a credibilidade do herói para mobilizar a opinião pública e o governo contra ele, convencendo as autoridades a lhe darem carta branca para tratar o Superman como um inimigo do Estado, ao mesmo tempo em que lucra com a guerra no exterior que o Superman tentou impedir.
É uma narrativa que entende muito bem quem o Superman é e o que ele representa. Um personagem que carrega consigo uma dimensão aspiracional. Pouco importa se é realista que alguém com tanto poder fosse ser tão benevolente e bem intencionado caso existisse, o personagem não foi pensado para isso e a arte não é obrigada meramente mimetizar o mundo tal como ele é, a arte também pode refletir sobre como queremos ou podemos ser e é aí que está a força do Superman enquanto personagem. Ele é alguém com um poder quase absoluto, indestrutível, que pode fazer o que bem entender e deliberadamente escolhe ajudar as pessoas, salvar quem precisa independente do quão pequeno esse gesto possa ser. É um personagem movido pelo desejo de proteger e cuidar. É como deveríamos ser.
Alguém movido apenas pelo desejo de fazer o bem poderia acabar sendo um personagem bem insosso, mas o filme escapa dessa armadilha ao explorar a humanidade que há em Clark. Apesar de super poderoso, ele não tem todas as repostas, ele tem dúvidas e mesmo quando faz o que acredita ser certo ainda é capaz de se colocar em xeque. Mais que isso, o filme põe a moralidade do protagonista diante de um mundo cínico, que não vê a benevolência como força, mas como uma falha ou como algo que oculta segundas intenções. Um mundo em que a moralidade é cada vez mais cinzenta e que Clark precisa aprender a navegar.
David Corenswet convence do calor humano e a gentileza que emanam do Superman, alguém cujas boas ações estimulam o melhor naqueles ao seu redor. O ator, no entanto, também encontra espaço para que vejamos as inseguranças do personagem, seja em sua relação com Lois (Rachel Brosnahan), seja nos questionamentos a respeito de sua conduta, como evidenciado na cena em que ele é entrevistado por Lois e se frustra com as perguntas dela. A cena, por sinal, ilustra bem a natureza arguta e indomável de Lois, que coloca seu trabalho como jornalista à frente de qualquer coisa ainda que claramente nutra um grande afeto por Clark.
Discurso de ódio
Um herói, no entanto, só é tão interessante quanto seu vilão e Nicholas Hoult é excelente como Lex Luthor. Em cada segundo que está em cena Hoult deixa muito visível o desdém pelo Superman que move suas ações. Luthor é um ególatra que age como se a atenção que o Superman recebe fosse uma ofensa à sua própria grandiosidade. Hoult também faz Luthor se conduzir com a confiança e arrogância de quem tem a certeza de que é a pessoa mais inteligente em qualquer recinto no qual esteja (e ele é na maioria das vezes). A combinação de arrogância, egocentrismo, inveja, cinismo e genialidade que Hoult traz a Luthor fazem a sua versão do vilão ser uma das mais interessantes entre as várias adaptações live action do personagem.
A trama ajuda a ilustrar a inteligência do vilão em um plano que soa complexo sem ser desnecessariamente mirabolante como o Luthor de Jesse Eisenberg em Batman vs Superman (2016). É um Luthor focado, que estudou tanto o Superman que sabe prever suas ações e tem contingências em cima de contingências para lidar com ele. A todo momento temos a sensação de que Luthor está vários passos adiante de qualquer pessoa ao seu redor. O plano de Luthor também mostra como bilionários conseguem facilmente direcionar a opinião pública com redes sociais e desinformação, lembrando da facilidade como ambientes online facilitam a propagação de discursos de ódio.
Força do bem
As cenas de ação reforçam o amplo poder do Superman conforme ele enfrenta monstros gigantes e outros meta-humanos, mas a ação também ressalta que o foco do herói é mais em salvar vidas e manter as pessoas seguras do que apenas em derrotar vilões. Isso é perceptível no momento em que ele luta contra uma criatura no centro de Metrópolis e corre para evitar que o monstro se choque contra um prédio depois de socá-lo. Ele está sempre tentando tirar seus adversários de áreas populosas e salvar as pessoas que estão no meio do fogo cruzado.
Essa atitude fica bem marcada no contraste entre ele e o grupo de heróis formado por Guy Gardner (Nathan Fillion, ótimo na personalidade abrasiva a canastrona do explosivo Lanterna Verde), Mulher Gavião (Isabela Merced, a Dina de The Last of Us) e Sr. Incrível (Edi Gathegi), que agem com bem menos cuidado em relação ao dano colateral que causam. A ação também tem boas doses de humor, principalmente pela presença de Krypto, o supercão, que é responsável alguns dos momentos mais divertidos do filme.
Ao longo da trama há uma clara intenção de pensar no Superman como um imigrante, alguém que veio de fora e tornou aquele lugar seu lar, inclusive comparando os sentimentos de xenofobia fomentados por Luthor com as práticas de políticos reacionários do mundo real. É uma abordagem que os quadrinhos já adotam faz algum tempo, mas que aqui esbarra em alguns problemas, especialmente no modo como o filme repensa a relação do Superman com seu planeta natal a partir da revelação do real propósito de Jor-el (Bradley Cooper) em enviar seu filho ao nosso mundo. Sim, a humanidade do Superman é uma de suas maiores forças e isso foi adquirido a partir de sua criação aqui na Terra (Pruitt Taylor Vince e Neva Howell exalam afeto como Jonathan e Martha Kent, por sinal), mas o Superman, como qualquer imigrante, é uma cria de dois mundos. Sua origem é parte indissociável de quem ele é.
Ao terminar o filme dando a entender que Clark cortou laços com sua origem e considera sua criação humana como o único definidor de quem é a mensagem do filme acaba, mesmo que talvez sem essa intenção, se aproximando de discursos de assimilação colonial. Nas antigas potências coloniais, os colonizados só seriam tratados como cidadãos uma vez que se deixassem assimilar pela cultura do colonizador e abandonassem os traços de sua cultura nativa. Se Clark só se torna plenamente aceito por nós ao apagar a conexão de onde vem, se não reconhece mais isso como parte de quem é (embora ele não tenha como se desfazer disso, já que até seus poderes vem de sua origem alienígena), o que o texto de Gunn defende ao ter o herói como uma metáfora para imigrante é que um imigrante precisará ser assimilado para ser aceito, repetindo uma forma de violência que data dos tempos coloniais e que entra em contradição com o discurso de tolerância que o filme tenta pregar. Sim, a revelação envolvendo os kryptonianos pode ser revisada em projetos futuros, mas aqui o modo como ela é usada na história soa problemático no contexto do discurso de imigração.
Mesmo com esse tropeço, Superman não deixa de ser uma ótima
renovação do personagem que entende muito bem como ele deve funcionar como um
símbolo de benevolência em um mundo cada vez mais cínico, empolgando, divertindo e trazendo esperança.
Nota: 8/10
Trailer
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