segunda-feira, 21 de julho de 2025

Crítica – Iracema: Uma Transa Amazônica

 

Análise Crítica – Iracema: Uma Transa Amazônica

Review – Iracema: Uma Transa Amazônica
Realizado por Orlando Senna e Jorge Bodanzky e lançado em 1975 Iracema: Uma Transa Amazônica chegou a ser proibido pela ditadura militar por muitos anos e só foi lançado no Brasil em 1981. Hoje o filme recebe uma restauração em 4K para voltar aos cinemas e revisitá-lo agora traz a constatação melancólica de que muito pouco mudou no país entre os cinquenta anos que separam sua produção do seu retorno às salas de cinema.

Mitos desconstruídos

A narrativa acompanha o caminhoneiro Tião Brasil Grande (Paulo César Peréio) que vai para o norte do Brasil por conta da promessa de progresso e riqueza que a rodovia Transamazônica (oficialmente a BR-230) supostamente traria. Chegando lá ele conhece Iracema (Edna de Cássia), uma adolescente indígena que sobrevive de prostituição, e a leva consigo em suas viagens pelo norte. É um filme que mistura atores e cenas encenadas com personagens reais, colocando Peréio para interagir com pessoas da região enquanto dialoga sobre o suposto progresso que o governo militar diz estar acontecendo por conta da obra da rodovia.

Nesse sentido o filme usa sua narrativa para repensar vários discursos mitificados sobre o Brasil e identidade nacional, alguns da ditadura e outros de antes, mas que também construíram a visão de Brasil que os militares tentaram vender (o que explica porque o governo da ditadura proibiu o filme). A Transamazônica, grande projeto de infraestrutura dos militares, é mostrada aqui não como um elemento de progresso que traria melhores condições de vida para as populações nos rincões mais remotos do país, mas como um caminho para a exploração e extrativismo predatório daqueles que vem de fora dilapidarem aquela região.

Tião facilmente compra madeira ilegal para transportar de volta, fazendeiros fazem queimadas para destruir mata nativa e trabalhadores são trazidos para trabalhar em fazendas com promessa de emprego, mas submetidos em regimes análogos à escravidão. O dito progresso trazido pela estrada é um extrativismo predatório tacanho que torna pior as vidas das populações nativas, mostrando que o ideal de progresso e integração entre diferentes povos que compõem o país na prática é um ideal de pilhagem de recursos naturais e subjugação dos nativos.

Miscigenação violenta

Outro elemento que desconstrói mitos sobre o Brasil é a relação entre Tião e a adolescente indígena Iracema. Não é acidente que a personagem receba o mesmo nome da protagonista criada no século XIX pela literatura de José de Alencar e que ajudou a difundir o mito de uma convivência e miscigenação pacífica entre indígenas e colonizadores. A Iracema de Senna e Bodanzky está longe de ser a “virgem dos lábios de mel” de Alencar, sendo uma jovem pobre, de vida precária, que encontra na prostituição o único meio de sobreviver e que mesmo nesse trabalho é maltratada, explorada e brutalizada.

Sua relação com Tião é uma transação desequilibrada na qual o caminhoneiro a usa tira dela tudo que quer enquanto ela recebe apenas comida e um lugar para dormir. Tião está longe também da figura do colonizador benevolente de Alencar, sendo um sujeito que age apenas em benefício próprio e pouco se importa com Iracema para além dos prazeres fugazes que extrai dela. O que vemos aqui não é integração ou miscigenação de povos, mas o abuso violento de uma pessoa nativa por um sujeito que vem de fora prometendo progresso.

O desfecho desses dois personagens simboliza ainda mais a rejeição ao mito construído na literatura de Alencar e reforçado pela retórica do governo militar. Se reencontrando anos depois de seu vaguear pelo norte do país Tião melhorou de vida, tem um novo caminhão, ainda mais moderno, transporta gado ao invés de madeira, o que lhe rende mais dinheiro. Iracema, no entanto, continuou vivendo no mesmo prostíbulo de beira de estrada no qual Tião a abandonou e os anos de precariedade a deixaram com uma aparência envelhecida, já sem alguns dentes e talvez ainda mais sem perspectivas do que quando encontrou Tião. Um desfecho que opera como metonímia da relação entre colonizador e colonizado, com a prosperidade daquele que vem de fora se construindo em cima da violência, exploração e descaso com os nativos que são largados na beira da estrada de um progresso que não foi construído ou pensado para ser deles.


Trailer

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