sexta-feira, 16 de maio de 2025

Rapsódias Revisitadas – Devorar (Swallow)

 

Análise – Devorar (Swallow)

Review – Devorar (Swallow)
Lançado em 2019, Devorar trabalha o horror corporal de uma maneira diferente do que estamos acostumados a ver em produções como as do Cronenberg ou da Julia Ducournau. Ao invés de transformações bizarras e bastante explicitas que despertam nossa angústia e até repulsa, o desconforto causado aqui é mais pelo temor das consequências do que a protagonista faz com o próprio corpo do que pela criatividade de modificações corporais insólitas.

Fome de viver

Não que as ações da protagonista Hunter (Haley Bennet) não sejam bizarras. Recém-casada, Hunter vai morar com o marido em uma remota mansão que seu sogro lhes deu de presente de casamento. Ela agora é uma dona de casa que vive isolada, recebendo visitas apenas dos sogros e de amigos do marido. Hunter se torna totalmente do cônjuge, que passa a exercer muito controle sobre a sua vida. Isso se agrava depois que ela engravida e a família do marido para a controla-la ainda mais, como se ela deixasse de ser uma pessoa para apenas ser um veículo para o filho nascituro. É aí que ela começa a desenvolver o hábito de comer estranhos objetos, inicialmente com coisas como bolas de gude, mas logo ingerindo coisas mais perigosas como pilhas ou tachinhas.

É uma conduta que soa como fruto da solidão, do desamparo e do senso que ela não é muito mais do que um misto de bibelô a ser exibido em festas pelo marido e uma dona de casa que deve servir as necessidades. É o jeito dela de fazer algo que seja só seu e de retomar o controle do que passa pelo seu corpo. Há nisso uma pulsão de morte que talvez seja suicida, como se eliminar a própria existência fosse sua maneira de se libertar da prisão de luxo em que vive, ou que talvez seja direcionada ao feto que cresce em seu ventre, um filho que ela pode nunca ter desejado ter.

O filme investe em muitos planos abertos com Hunter sozinha em quadro ou observando à distância as outras pessoas durante festas, ressaltando o isolamento e solidão da personagem. Haley Bennet faz de Hunter alguém que se torna tão carente e controlada que regride a uma conduta infantilizada, muitas vezes se expressando como uma adolescente se expressaria. Conforme a família do marido tenta controlar sua vida ainda mais e ela vai percebendo a necessidade de sair desse ambiente, Hunter, porém, vai se tornando mais assertiva, em especial quando começa a agir por conta própria para resolver seus problemas.

Por outro lado, o clímax do filme coloca a personagem para lidar com os traumas e questões emocionais que provavelmente a colocaram nessa posição, mas tudo é resolvido de uma maneira muito rápida. Isso faz as questões psicológicas levantadas ao longo da trama soarem simplórias, já que a narrativa não dá o devido tempo para explorar os elementos emocionais complicados da personagem.

Objetos cortantes

Muito da tensão e desconforto do filme vem das cenas em que Hunter engole objetos que a maioria das pessoas jamais pensaria em por na boca. Quando ela engole uma tachinha pela primeira vez assistimos enquanto seu corpo se contorce de dor provavelmente pelo objeto metálico descer rasgando no seu esôfago, sendo angustiante acompanhar a personagem se autoflagelando dessa maneira. Do mesmo modo, há algo de bizarro em vê-la mexer nas próprias fezes para remover a bola de gude que engoliu dias antes e guardá-la como um troféu, sendo ainda mais horripilante nos momentos em que Hunter evacua sangue por conta dos objetos que ingeriu.

Os momentos em que ela é levada ao hospital e tem os objetos removidos fazem questão de nos mostrar Hunter sedada sendo operada enquanto vemos as imagens da câmera da endoscopia adentrando suas entranhas, observando esse procedimento como mais uma invasão do corpo dela e nos fazendo ver as imagens internas de seu corpo nos colocando na posição de cúmplices dessa invasão. O controle sob o próprio corpo é constantemente tirado de Hunter.

Momentos assim fazem de Devorar uma angustiante reflexão sobre o controle dos corpos femininos e até onde alguém vai para ter algum senso de autonomia, ainda que as facetas psicológicas que o filme tenta analisar em sua protagonista fiquem relativamente na superfície.


Trailer

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