O homem que sabia demais
A narrativa se passa em Recife em 1977 e acompanha Marcelo (Wagner Moura), um homem perseguido pela ditadura militar brasileira que chega na cidade para reencontrar o filho enquanto espera documentos para sair do país. Ele se abriga no edifício Ofir, lugar onde outros “refugiados” se escondem sob a tutela de Dona Sebastiana (Tânia Maria). Ao mesmo tempo, uma dupla de matadores de aluguel chega a Recife atrás de Marcelo.
Na superfície é mais um filme sobre o período da ditadura militar, mas na prática é um amplo retrato de um tempo e de um lugar com a ditadura fazendo parte desse retrato, mas englobando também uma série de outras ideias que são caras a Kleber Mendonça Filho que já apareceram em seus trabalhos anteriores. Suas preocupações com as transformações urbanas em Recife já estavam presentes desde o curta Recife Frio (2009), passando por longas como O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e o documentário Retratos Fantasmas (2023). Os processos de autoritarismo e violência estatal já estavam presentes em Bacurau (2019), bem como suas reflexões do modo como pessoas do sul e do sudeste tratam o nordeste brasileiro. Sua conexão com o cinema de terror e histórias sobre membros desmembrados era visível no curta Vinil Verde (2004).
O que encontramos aqui, no entanto, não é meramente uma reciclagem de ideias ou uma colcha de retalhos de temas díspares, mas a construção de um todo coeso cuja dimensão local de pensar a Recife da década de 70 acaba servindo como uma metonímia para o Brasil como um todo. Um país com uma cultura pulsante e uma população resiliente, sempre em busca de um meio para sobreviver aos problemas cotidianos, principalmente a partir da cooperação entre as pessoas, mas também um Brasil marcado pela corrupção, por agentes de estado truculentos que veem a máquina pública como um meio de ganho pessoal e não de servir à população, de figuras truculentas que tratam com violência qualquer um que não se adeque aos seus ideais de um “cidadão de bem”.
A cidade é uma só?
Impressiona como o filme te faz sentir diante de uma realidade vivida e não de algo completamente encenado. Há um senso de espontaneidade e caos nas interações entre os personagens nas quais algo inesperado quase sempre acontece em cena como se tivesse acontecido espontaneamente ao invés de ter sido roteirizado. Um exemplo disso é quando Marcelo desce ao arquivo da repartição na qual trabalha e encontra um vigia transando lá dentro. Não acrescenta nada à narrativa, mas ajuda a dar a impressão de um universo vivo, que existe à revelia dos personagens e não em função deles. Nesse sentido, quem rouba a cena é Tânia Maria como Dona Sebastiana, que sempre diz coisas inesperadas para os moradores e arranca risos que são tão sinceros que dão a impressão de serem falas improvisadas que os colegas de cena não esperavam.
A paisagem sonora é outro elemento que ajuda a dar a impressão de um universo vívido, já que não importa onde os personagens estão, os ruídos ambientes sempre nos dão a impressão de um movimento constante de lugares com muito fluxo de gente. Na repartição temos os sons de máquinas de escrever, o burburinho das pessoas e a voz da atendente chamando para distribuir documentos. No cinema temos o barulho constante dos projetores e também das reações da plateia. Há uma cena em que Marcelo conversa com Elza (Maria Fernanda Cândido), a responsável pela organização que tenta ajudá-lo, em um quartinho em cima do cinema e em vários momentos podemos ouvir os gritos da plateia durante uma exibição do filme A Profecia (1976). Quando vemos Marcelo caminhar pelo meio do carnaval sentimos toda a intensidade da festa por meio do som, cuja vibração atinge nossos corpos na poltrona do cinema.
A narrativa constrói uma tensão crescente conforme vemos os perseguidores de Marcelo se aproximando dele e entendemos o levou a ele ser perseguido, mas a Recife que o filme constrói é muito mais do que apenas um lugar de perigo. Há espaço para leveza e riso, conforme as pessoas do prédio de Dona Sebastiana organizam festas para dar algum senso de normalidade às suas vidas ou nos momentos em que Marcelo passeia com o filho. A narrativa ainda flerta com o terror nos segmentos em que acompanhamos nos jornais as narrativas sobre a Perna Cabeluda que aterroriza a cidade. É algo que serve como metáfora para o temor constante da violência presente nos anos de repressão da ditadura, mas que remete também à censura ao jornalismo uma vez que esse tipo de conteúdo fantasioso costumava ser publicado quando alguma outra notícia era censurada e o jornal precisava encher de alguma forma o espaço da notícia removida.
Passado e presente
Ao enquadrar a história a partir da contemporaneidade, mostrando que acompanhamos a história de Marcelo e dos outros a partir de gravações que estão sendo catalogados por pesquisadoras nos dias atuais. É como se o filme pensasse a memória da ditadura como algo que só pode ser construído a posteriori, escavando, descobrindo e desvelando registros que foram suprimidos ou ficaram escondidos. Uma memória que é também construída pelo próprio cinema, tanto no modo como ele retrata essa época quanto pelas maneiras que os filmes desse período construíram um senso de identidade cultural conforme ele nos apresenta as obras que marcaram a época.
Esse diálogo entre passado e presente nos lembra também das lacunas nas memórias e arquivos do período, de como a ditadura militar é algo irresoluto. Nem todos os desdobramentos dos eventos são explicados, o modo como a história termina nos é narrado apenas em fragmentos de informação. Isso pode decepcionar algumas pessoas que esperavam um desfecho mais amarrado, mas faz sentido em relação ao lugar da ditadura militar em nossa história. Uma ferida aberta que nunca foi plenamente tratada, cheia de crimes que não foram plenamente investigados e pessoas que nunca responderam por eles. É uma incompletude que mimetiza a incompletude de nossa realidade e que lembra como ainda sentimos no presente os impactos de não termos passado a limpo o período da ditadura militar.
Transitando entre diferentes gêneros
e vários temas, O Agente Secreto resulta
em uma análise bem abrangente e consistente da Recife do final da década de 70
e como tudo isso reflete uma realidade brasileira mais ampla ao longo de
diferentes lugares e tempos.
Nota: 10/10
Trailer


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