quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Crítica – A Queda da Casa de Usher

 

Análise Crítica – A Queda da Casa de Usher

Review – A Queda da Casa de Usher
Não vi as séries anteriores que o diretor Mike Flanagan fez para a Netflix, como Missa da Meia Noite e A Maldição da Residência Hill, mas o que me atraiu para este A Queda da Casa de Usher ser inspirada na obra de Edgar Allan Poe. Apesar do título evocar um conto específico do escritor e poeta, a minissérie pega elementos de várias histórias e poemas escritos por ele, com cada episódio evocando uma obra específica além de personagens inspirados em diferentes outras obras.

A narrativa se passa nos dias atuais, sendo centrada no magnata da indústria farmacêutica Roderick Usher (Bruce Greenwood). Sua empresa está no auge do poder e riqueza depois de lançar um analgésico altamente viciante que agrava a epidemia de opioides nos EUA. Aos poucos eventos estranhos começam a acontecer ao redor dele e de sua família, com seus filhos sendo mortos um a um. É então que a irmã de Roderick, Madeline (Mary McDonnell), se recorda de um acordo que fizeram com uma misteriosa mulher (Carla Gugino) anos atrás em troca de poder e riqueza.

A ideia de misturar várias histórias de Poe em uma trama só poderia resultar em uma bagunça de tons e tramas, mas o roteiro é eficiente em juntar todas as ideias em um todo coeso, criando tramas que remetem às histórias de Poe, atualizando seus elementos ao mesmo tempo que enche a tela com referências às obras do escritor, como o nome da primeira esposa de Roderick que é uma menção ao poema Annabel Lee ou o advogado dos Usher, Arthur Pym (Mark Hammill, o eterno Luke Skywalker), que é uma menção ao romance A Narrativa de Arthur Gordon Pym, com o personagem da série sendo o que teria acontecido com Arthur depois de sua jornada ao redor do mundo cheia de infortúnios.

Ao situar as histórias na contemporaneidade, a trama faz várias adaptações às narrativas de Poe e as conecta com preocupações bem contemporâneas. O episódio inspirado em Os Assassinatos da Rua Morgue, por exemplo, usa o assassinato cometido por macaco para falar do modo antiético e cruel que empresas da área de saúde e de cosméticos experimentam com animais. Do mesmo modo que a trama baseada em O Coração Delator mostra como a área de pesquisa em próteses médicas muitas vezes vende produtos enganosos porque falsifica dados de pesquisa (como mostra o documentário Operação Enganosa).

A ideia de colocar os Usher como uma família que controla um conglomerado farmacêutico também dialoga com preocupações contemporâneas com a crise de opioides que toma corpo em vários lugares do mundo (os Usher servem de simulacro para a família Sackler, dona da farmacêutica Purdue, cuja história foi muito bem contada na série Dopesick) e também do modo como bilionários tem tanto poder econômico e político que são praticamente intocáveis pelas autoridades, como fica evidente na relação de Roderick com o obstinado investigador Auguste Dupin (Carl Lumbly), que nunca consegue pegá-lo, apesar de seus esforços.

As ponderações sobre poder e riqueza, no entanto, não ficam centradas apenas em críticas aos bilionários. Como mostra o diálogo entre Roderick e Madeline no episódio final, o texto também pondera sobre o papel de cidadãos comuns em todo esse cenário, criticando o conformismo com o qual navegamos por esse mundo sem questioná-lo, buscando no escapismo vazio do consumo um escape para nossas preocupações e para não precisarmos lidar com as verdades duras do mundo ou nos furtar de fazer algo a respeito.

A série também mostra como o poder e riqueza corrompem, mostrando como Roderick abandonou a pacata vida doméstica que tinha com a primeira esposa para se tornar um gigante corporativo e como essa corrupção afetou a relação dele com os vários filhos. Tratando-os como extensões de si e veículos para manter sua hegemonia nos negócios, as atenções de Roderick só se voltam para a prole quando eles atendem aos seus interesses, criando uma voraz competição entre os filhos e uma insegurança profunda neles, que batalham pelo afeto do patriarca ou tentam suprir essa necessidade com drogas e festas. Nesse sentido, a narrativa é quase uma versão sobrenatural de Succession.

Para além de toda a celebração à literatura de Poe e de críticas à sociedade contemporânea, a série é bem eficiente em criar um clima de terror. Muito vem do trabalho de Carla Gugino, como a misteriosa mulher que cruza o caminho de cada um dos Usher e inevitavelmente os guia à perdição. Enigmática, a atriz nos deixa intrigados a respeito do que realmente deseja essa figura misteriosa, embora ela também demonstre um claro prazer em manipular e punir esses ricaços hedonistas, usando seus desejos e prazeres contra eles. É uma figura que nos deixa inquietos sempre que está em cena, porque sabemos que quando ela aparece as coisas irão fatalmente dar errado para os Usher.

As mortes brutais dos Usher, como o ácido que mata o caçula (e todas as pessoas na festa em que ele está) ou desfecho de Frederick (Henry Thomas) que remete ao conto O Poço e o Pêndulo são outro elemento através do qual o filme manifesta suas aspirações de horror. À medida que o estado mental de Roderick se deteriora e ele começa a ver aparições que dos filhos mortos e de outros corpos que ele deixou pelo caminho, a série traz alguns sustos eficientes conforme aparições sinistras se manifestam em cena.

A Queda da Casa de Usher, portanto, serve como uma excelente celebração do legado literário de Edgar Allan Poe, situando a sensibilidade do escritor em preocupações contemporâneas para mostrar a força expressiva de sua escrita e comentar sobre os horrores reais do capitalismo atual.

 

Nota: 9/10


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