quinta-feira, 6 de julho de 2023

Dopesick e o problema das drogas legais

 

Review - Dopesick

Quando se fala sobre combate às drogas normalmente pensamos em drogas ilícitas como cocaína, crack ou heroína, mas recentemente as autoridades, especialmente nos Estados Unidos, tem atentado para o que eles chamam de “epidemia de opioides”, o abuso de narcóticos legais que viciam tanto ou mais que drogas ilícitas e que geram a mesma degradação social que suas contrapartes ilegais. A série Dopesick, lançada em 2021, aborda justamente a ascensão da crise de opioides nos EUA, tendo como ponto de parte o lançamento da droga Oxycontin pela empresa farmacêutica Purdue.

A narrativa começa na década de noventa e vai até meados dos anos 2000 para mostrar o lançamento da droga e o impacto que isso teve nos Estados Unidos a partir de vários núcleos de personagem. Acompanhamos Richard Sackler (Michael Stuhlbarg), herdeiro de uma das famílias que controlam a Purdue e responsável pela criação do medicamento. Sackler vê o potencial de ganho em conseguir que a droga seja vendida não apenas para dores crônicas severas, mas para qualquer dor moderada. Para isso, manipula dados e compra médicos para dizerem que a droga é menos viciantes e que dores não tratadas são o principal problema de saúde nos EUA.

Os representantes da farmacêutica, como Billy (Will Poulter), são treinados em táticas de venda agressivas para convencerem os médicos da segurança da droga e também a oferecem uma série de mimos (que em tese seriam ilegais) para estimular que o remédio seja receitado. Sam (Michael Keaton) é um dos médicos que Billy atende. Clínico geral em uma pequena cidade que vive da mineração de carvão, Sam se convence pelo material de Billy de que a droga é segura e começa a receitar a alguns de seus pacientes. Uma dessas pacientes é Betsy (Kaitlin Dever), jovem mineradora que machuca severamente as costas em um acidente de trabalho. Sam receita Oxycontin e Betsy logo fica viciada na droga, passando a viver para conseguir mais doses, prejudicando sua relação com a namorada, a família e seu desempenho no trabalho.

O promotor federal Rick Mountcastle (Peter Saarsgard) começa a perceber o estrago que o vício em Oxy vem causando em seu estado e começa a montar um caso contra a Purdue, mas tem dificuldade em obter informações da empresa e também de obter a cooperação de outros órgãos do governo, em especial a FDA (mais ou menos o equivalente da nossa ANVISA), que é responsável pela regulação do medicamento.

A série traça um panorama amplo e contundente de como as ações gananciosas da Purdue, que colocaram nas ruas um medicamento potente e aditivo, estimulando a prescrição dele até mesmo para casos pouco severos mesmo sabendo dos riscos. Arcos como o Sam, que se torna viciado na droga depois de ser medicado com ela após um acidente de carro, ou Betsy mostra o dano que o medicamento causa nas pessoas e o estrago que faz em comunidades de classe média e baixa. Vemos também como muito acontece por conta da permissividade de órgãos reguladores, que se vendem em troca de cargos nas farmacêuticas e deixam que elas operem impunemente.

A despeito da quantidade enorme de personagens, a série evita o problema comum desse tipo de produção que é reduzir seus personagens a funções na trama ou a engrenagens dentro de um motor social. O texto consegue explorar como tudo aquilo afeta esses sujeitos e o que os impele a agir. Richard Sackler, por exemplo, poderia ser reduzido a vilão caricato, no entanto, o material se esforça para nos fazer o motivo de suas ações. De como ele sofre de um complexo de inferioridade em relação ao pai e quer provar seu valor para a família e para a empresa, sendo uma espécie de versão mais astuta do Kendall Roy de Succession. Isso faz as ações dele serem menos monstruosas e sem escrúpulos? Não, mas permite que vejamos os sentimentos humanos que guiam suas ações e as compreendemos ao invés de o enxergarmos como alguém dotado de uma maldade vaga e abstrata. De maneira semelhante vemos como Sam não apenas é devastado pelo vício, mas também pela culpa de ter receitado aos pacientes uma droga que destruiu suas vidas.

Billy vai aos pouco despertando para as práticas espúrias da empresa com a qual trabalha e se no início ele parecia apenas interessado em dinheiro e mulheres, vemos como as consequências éticas dos seus atos o afetam ao ponto de cooperar, ainda que anonimamente com as autoridades. Nesse aspecto a série me lembrou o filme O Informante (1999), que mostrava como a indústria do tabaco tentava a todo custo silenciar aqueles que delatavam os riscos do cigarro. Aqui vemos as farmacêuticas agirem com a mesma virulência para proteger seus interesses e silenciarem aqueles que tentam levar à verdade à público.

O final acaba sendo meio agridoce, já que por mais que a Purdue tenha recebido alguma punição e o julgamento tenha aberto jurisprudência para outros processos civis e criminais, sabemos que os executivos não verão um dia de cadeia e que as multas milionárias não passam de trocados no caixa bilionário da empresa. Por mais que se fique feliz com punições e maior controle sobre a droga para diminuir seus impactos na sociedade, há a amarga realização de que bilionários detêm tanto capital e influência que se tornam praticamente imunes à lei.


Trailer

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