terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Crítica – Aftersun

 

Análise Crítica – Aftersun

Review – Aftersun
Quando somos crianças muitas vezes pensamos em nossos pais como super-heróis infalíveis. Só quando nos tornamos adultos é que vemos que eles são falhos como qualquer pessoa e ao revisitar as memórias de infância nos perguntamos como não percebemos antes os problemas deles ou o que eles estavam passando. Aftersun primeiro longa metragem da diretora Charlotte Wells é exatamente sobre esse exame de memórias e a tentativa de conciliar a imagem que criamos de nossos pais com a realidade do que eles eram.

Quando tinha onze anos Sophie (Frankie Corio) viajou para a Turquia para passar férias com o pai, Calum (Paul Mescal), em um modesto resort. Já adulta Sophie (Celia Rowlson-Hall) revisita filmagens e fotos da época para pensar em como o modo que ela se lembra daquele período e do pai.

A trama ocasionalmente se desloca no tempo entre a Sophie criança e a versão adulta da personagem e esses movimentos acontecem com relativa naturalidade, quase sem chamar atenção para si. Não interessa a Wells o jogo com as temporalidades e sim explicitar para o espectador que aquilo que vemos não é a realidade do passado, mas a memória de Sophie. É como ela lembra, não necessariamente o que aconteceu e essa constante volta ao passado, como um disco que toca sem parar, soa quase como uma tentativa de Sophie de tentar encontrar vestígios que ela teria deixado passar quando criança.

Esse olhar discreto da direção de Wells se estende por todo o filme, que segue sem grande arroubos dramáticos ou momentos chamativos de drama ou tragédia, é tudo muito naturalista, bem próximo do que seria numa situação real em que é a soma de pequenos momentos que dá força à jornada. Claro, esse naturalismo e relação crível de pai e filha não se constrói apenas pela direção, mas pelas atuações de Frankie Corio e Paul Mescal.

Corio evita o clichê de menina precoce e espevitada que normalmente é usado nesse tipo de filme, fazendo de Sophie uma garota curiosa, cheia de energia e consideravelmente ingênua. Essa ingenuidade fica evidente no modo como ela pergunta ao pai porque ele ainda diz “eu te amo” quando fala com a mãe dela ao telefone apesar deles não estarem mais juntos. Esse é um dos momentos em que vemos essas tais pistas daquilo que Sophie não via na infância, que ação do pai ao dizer isso carrega uma espécie de esperança melancólica de talvez retomar o relacionamento ou de expiar a culpa que ele possa carregar pelo fracasso.

Falo em termos especulativos porque o filme nunca nos explica o que de fato aconteceu e faz sentido que não o faça, já que observamos tudo pelo ponto de vista de Sophie e suas memórias. O que importa aqui não é a verdade dos fatos, mas o processo da protagonista em entender como nossas memórias constroem narrativas e impressões de realidade mesmo quando não correspondem aos fatos ou estes nos escapam. É um gesto similar ao que Sarah Polley empreendeu no excelente Histórias que Contamos (2012), lembrando que aquilo que entendemos como realidade perpassa por uma construção subjetiva e que nunca compreendemos plenamente as pessoas ao nosso redor.

Já Paul Mescal faz de Calum um sujeito que tem um claro afeto pela filha e um desejo de fazer o melhor para ela, ainda que também seja alguém bastante vulnerável emocionalmente por carregar uma certa dor por escolhas erradas que fez ao longo da vida. É uma vulnerabilidade que ele tenta ocultar da filha, não exatamente por orgulho, mas provavelmente para tentar preservar a imagem que Sophie tem dele. Ainda assim, conseguimos vislumbrar as dores que ele traz por baixo da imagem de paizão divertido, como no segmento em que ele sai para beber sozinho e Sophie o vê sentado chorando à beira da cama cheio de tristeza e culpa.

Em uma diálogo com a filha mais para frente, Calum pede que Sophie converse com ele sobre tudo, incluindo sexo e drogas, admitindo para a filha que usou praticamente tudo, nos fazendo ver os vícios do personagem e ponderando como isso deve ter impactado o casamento. Se na memória de Sophie isso pode soar como Calum querendo ser um pai moderno e descolado, para nós mostra como ele sabe os problemas que os vícios lhe causaram e não quer algo semelhante para filha, mostrando simultaneamente fragilidade e preocupação. O modo como Calum quebra o gesso que tinha no braço dentro do quarto de hotel nos dá a entender que ou ele não tinha dinheiro para voltar ao médico ou que não queria responder perguntas sobre como feriu o braço. Como disse antes, a diretora nunca faz desses momentos grandes instantes, não chama atenção para eles, são coisas que acontecem no cotidiano desses personagens e vão se somando aos poucos para formar nossa compreensão sobre eles e reverberam conosco bem depois do filme acabar.

A maneira como Wells monta o filme e ocasionalmente opõe essas memórias do passado com um possível presente reforça a desconexão no modo como Sophie via o pai na infância e depois quando adulta. Em uma cena, vemos os dois abraçados na piscina do hotel e a felicidade de ambos, mas o filme rapidamente alterna essas imagens com a Sophie adulta encontrando o pai numa boate claramente sob efeito de alguma coisa e tentando tirá-lo dali. Nesse sentido é bastante simbólico que o filme encerre com a memória de Sophie se despedindo do pai no aeroporto, vendo ele passar pela porta do terminal, como se a própria Sophie adulta estivesse dizendo adeus para aquela imagem idealizada que tinha do pai, entendendo que foi a última vez que o olhou com sua admiração infantil.

Aftersun é um singelo estudo sobre memória e subjetividade, ponderando sobre a imagem romantizada que construímos sobre nossos pais, elevado pela direção cuidadosa de Charlotte Wells e pela química da sua dupla de protagonistas.


Nota: 10/10


Trailer

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