sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Rapsódias Revisitadas – Histórias que Contamos

 

Análise Crítica – Histórias que Contamos

Review – Histórias que Contamos
Quando damos um testemunho ou rememoramos algo muitas vezes pensamos que estamos sendo objetivos, que estamos lembrando as coisas exatamente como elas são, mas na prática não é exatamente assim. Nossa memória é falha, muitas vezes preenchemos as lacunas com suposições ou fabulações que não necessariamente correspondem ao que ocorreu. Ás vezes até somos influenciados pela fala de outros e acreditamos nos lembrar de algo que nunca aconteceu de verdade, como o fato dos ataques de 11 de setembro terem interrompido Dragon Ball Z na TV Globinho. Lançado em 2012, o documentário Histórias que Contamos trata justamente dessa natureza lacunar e fabulativa da memória, lembrando que são as narrativas que construímos sobre os fatos, não os fatos por si só, que ficam na nossa mente.

A diretora Sarah Polley conta a história de sua família, em especial de sua falecida mãe, Diane, e a relação dela com o pai de Sarah, Michael. Ao longo do filme ela ouve o pai, os irmãos e outras pessoas conhecidas da família, até mesmo aqueles não se envolveram diretamente com os eventos narrados. Paralelamente às entrevistas, o filme nos mostra cenas que parecem ser imagens de arquivo, aparentemente dos eventos narrados.

Se prestarmos atenção a essas imagens, no entanto, veremos algumas coisas estranhas. Como imagens coloridas da infância de pessoas muito idosas ou mesmo a conveniência de existirem imagens de todos os momentos citados nos testemunhos, mesmo aqueles que ninguém filmaria por não ter como saber que seria importante depois. Isso acontece porque não são de fato imagens de arquivo, mas cenas feitas por atores e filmadas com uma câmera Super 8 para dar a impressão de filme caseiro antigo.

Isso não é feito com a intenção de ludibriar o espectador, a diretora explicita eventualmente no filme o artifício, mas de ilustrar como muito de nossa memória, daquilo que cremos nos lembrar e termos feito vividamente, pode ter elementos de fabulação. Como imaginamos e construímos histórias ao redor de fatos que vivenciamos ou que nos foram narrados por outros e facilmente tomamos isso por verdade, quando a ideia de verdade pode ser muito mais complexa do que isso.

Essa complexidade vem quando o filme insere uma reviravolta sobre Diane e mostra que Sarah é fruto de um caso da mãe com outro homem, o que nos faz (e também parte dos entrevistados) repensar o quanto sabiam ou achavam que sabiam sobre a vida familiar de Diane. A revelação mostra como muito de nossa memória é tingida pela nossa subjetividade, pela maneira como achávamos que as coisas eram ao invés de como eram de fato. As imagens encenadas do “passado” servem justamente para ilustrar a natureza de fabulação da construção mnemônica.

Ao expor ao espectador o artifício, o documentário também nos faz ponderar como muitas vezes aceitamos como verdade, de maneira muito fácil e acrítica, fatos ou informações que nos são apresentados apenas por terem uma “aparência” de verdade. A menos que o espectador preste atenção em detalhes que eu mencionei no início do texto, a tendência é que tomemos como imagens de arquivo real essas cenas só por elas apresentarem um aspecto granulado antigo e taxa de aspecto de um filme de Super 8. A verdade, portanto, é desvelada não como algo absoluto, mas um construto que depende de um contexto interpretativo.

Construímos narrativas sobre os eventos ao nosso redor e depois tratamos essas narrativas como verdade esquecendo o componente subjetivo que envolve nossa compreensão dos fatos. Ao recorrer à encenação e chamar a atenção do público para esse dispositivo Sarah Polley nos convida a ponderar sobre como enxergamos e nos relacionamos com o mundo à nossa volta e com o cinema documental.

Desta maneira, Histórias que Contamos traz uma poderosa reflexão sobre memória, narrativa e subjetividade que impacta em como pensamos no nosso processo de formação de memória e em como lidamos com a representação no documentário.


Trailer

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