segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Crítica – Bacurau


Análise Crítica – Bacurau


Review – Bacurau
Fiquei um tempo em silêncio sentado na poltrona do cinema enquanto os créditos subiam ao fim de Bacurau, novo filme de Kleber Mendonça Filho, que aqui dirige ao lado de Juliano Dornelles. Os dois longas anteriores de Kleber, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016) tinham me causado impacto semelhante e, em igual medida, fui deixado sem saber como organizar meu raciocínio para falar do filme ou o que dizer exatamente sobre ele, já que parecia ter coisa demais para eu dar conta em um texto. Ainda assim, tentarei.

A narrativa se passa em um futuro não especificado no qual as coisas pioraram bastante no Brasil. O ponto central da trama é a pequena cidade de Bacurau, que sofre com falta de água depois que o governo represou um rio próximo. Teresa (Barbara Colen) retorna à cidade para o funeral da mãe, dona Carmelita, mas em seu tempo lá coisas estranhas começam a acontecer: drones passeiam pelos céus, carros são baleados e pessoas são mortas sem explicação. Assim, Teresa e outras figuras proeminentes na cidade como Acácio (Thomas Aquino) e a médica Domingas (Sônia Braga) tentam entender o que está acontecendo.

A trama aos poucos dá algumas pistas da situação através de cartazes, imagens de televisão e comentários breves dos personagens, o bastante para pintar a imagem de um Brasil profundamente dividido, desigual e violento sem, no entanto, referenciar um regime de governo específico. Isso ajuda o material a ter uma qualidade atemporal ao invés de algo preso a tópicos políticos muito específicos e que perderia daqui a dez anos ou algo assim quando tivéssemos mudanças significativas (ou não) no campo político.

Menções a um “Brasil do sul” parecem indicar que houve algum tipo de conflito de secessão no país, imagens de execuções públicas na televisão remetem a um Estado autoritário e truculento e o fato de Bacurau não constar no mapa, não receber água ou Teresa ter que levar remédios até lá indica um lugar esquecido ou ignorado pelas autoridades. Todos esses elementos remetem a coisas que já vimos serem cogitadas no Brasil, movimentos de secessão tem aparecido nos últimos anos, o abandono de regiões carentes no nordeste é uma constante e já tivemos nosso período de ditadura brutal.

Essa noção de que os habitantes de regiões sul do Brasil se veem como um povo separado fica evidente na cena em que os dois motociclistas brasileiros conversa com os estrangeiros que estão matando os habitantes de Bacurau. Os estrangeiros se referem aos habitantes da pequena cidade como “o povo” dos motoqueiros, mas a personagem vivida por Karine Teles essa noção dizendo que não são da área e sim do sul do Brasil, uma região com colônias de italianos, alemães e outros povos europeus brancos, estando assim mais próximos dos estadunidenses do que da população negra e mestiça de Bacurau. A fala é recebida com risos pelos estrangeiros, que dizem que os dois brasileiros não são brancos, apontando seus narizes e lábios como evidência, que no máximo seriam latinos.

Todo o diálogo é revelador do viralatismo brasileiro, que sempre tenta achar desculpas para se ver como estrangeiro, reiterando noções anacrônicas e racistas de que há algo de “melhor” ou “superior” em ser branco. Ao mesmo tempo a cena mostra o quanto essa atitude vira-latas é patética, já que europeus e estadunidenses jamais verão brasileiros como iguais, independente de quão clara seja a cor da pele, mostrando como essas populações sempre se veem como dominadores. Nesse sentido, não é por acaso que a casa na qual os estrangeiros se refugiem pareça ser um antigo engenho, mostrando como as populações estrangeiras continuam ocupando (literal e metaforicamente) espaços de poder e dominação.

A trama nunca explica de modo explícito o que os gringos estão fazendo no país, deixando pistas de que eles estão em uma espécie de safari de caça humano, revelando a subserviência do governo aos países estrangeiros e como o Brasil retratado no filme permite que potências internacionais tratem o país como um playground no qual eles podem brincar com as vidas dos brasileiros como bem entenderem. Tudo isso funciona como uma metáfora para o processo histórico de dominação estrangeira e extermínio da população que acontece praticamente desde que os portugueses aportaram em nossas terras.

Essa metáfora ao colonialismo é também trabalhada na cena em que um dos caçadores entra no museu municipal de Bacurau e sem qualquer cerimônia começa a pegar o patrimônio do local e guardar na mochila, como se os itens não pertencessem a ninguém e ele pudesse se apropriar deles como bem entendesse. Nada muito diferente do que colonizadores fizeram na América do Sul ou na África nos últimos séculos, roubando e se apropriando de arte e objetos de valor que não lhes pertencem.

Para além do modo constrói toda a sua trama como uma metáfora dos processos históricos e sociais do Brasil, há uma competente construção da tensão conforme coisas estranhas começam a acontecer na pequena cidade e a ameaça dos estrangeiros se torna mais próxima. Kleber e Dornelles constroem uma tensão similar à dos faroestes dirigidos por Sérgio Leone, com longos diálogos carregados de ameaças veladas e tensão subjacente que pode explodir em violência a qualquer momento.

Quando a violência de fato irrompe, o filme não economiza na crueza com que tudo é mostrado, com direito à imagem de uma cabeça explodindo em pedaços com um tiro à queima-roupa de um bacamarte. Bacurau não é, no entanto, um filme fácil de situar em termos de gêneros narrativos. O filme dialoga não só com o western, mas com o suspense, a ficção científica e até com as histórias do Asterix. Sim, Asterix, já que a trama se passa em uma pequena cidade, cercada de inimigos que resiste bravamente à ocupação recorrendo a uma substância aparentemente mística, tal qual nas histórias do gaulês criado por René Goscinny.

O clímax do filme oferece uma poderosa e brutal catarse ao ressaltar a resistência da população nativa de Bacurau, uma população nordestina, não-branca e que não se adequa necessariamente a modelos heteronormativos de sexualidade, evidenciado pela natureza andrógina de Lunga, o líder da resistência interpretado por Silvero Pereira. Essa escolha denota como a resistência à dominação e interferência estrangeiras não pode se dar pelo conformismo aos padrões ou norma estabelecidos por esses forasteiros com intento colonizador, mas através da rejeição desses padrões eurocêntricos.

A trama faz um claro paralelo entre a resistência dos personagens e o passado nordestino de resistência ao mostrar as fotos do cangaço no museu da cidade. Aliás, esse expediente de juntar passado, presente e futuro da história brasileira através de fotografias é algo que Kleber Mendonça já tinha feito tanto em O Som ao Redor quanto em Aquarius. Apesar de ser um filme mais focado no conjunto do elenco do que em intérpretes individuais, é difícil não destacar o trabalho de Sônia Braga nos poucos minutos que ela tem em cena, fazendo de Domingas uma mulher que apesar da aparente fragilidade exala autoridade e confiança, inclusive enfrentando desarmada e sem mostrar qualquer hesitação o líder dos forasteiros (interpretado por Udo Kier).

Sendo uma espécie de western futurista distópico, Bacurau é uma excelente reflexão sobre as estruturas de poder no Brasil e como os reflexos da dominação colonial permanecem até hoje.

Nota: 10/10


Trailer

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