segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Crítica - Mindhunter: 1ª Temporada

Análise Mindhunter: 1ª Temporada


Review Mindhunter: 1ª Temporada
Há uma frase do filósofo Friedrich Nietszche em seu livro Além do Bem e do Mal que diz que quem enfrenta monstros pena tornar-se um deles e que ao olhar o abismo o observador por ele também é contemplado. É possível interpretar que Nietszche queria falar sobre como é impossível passar por situações de moral questionável sem se afetado por elas e perseguir um inimigo significa absorver e se deixar "contaminar" em alguma medida por sua visão de mundo e maneira de pensar. É sobre isso que irá tratar essa primeira temporada de Mindhunter.

A série se passa na década de 70 e é centrada no agente do FBI Holden Ford (Jonathan Groff, a voz do Kristoff de Frozen). Holden trabalha como negociador de reféns e instrui novos agentes neste tipo de atividade, mas vai percebendo que seus conhecimentos não são suficientes para dar conta da conduta dos criminosos. Ele decide voltar à universidade e conhece Wendy Carr (Anna Torv), uma acadêmica que pesquisa condutas sociopatas. Ao lado dela e do agente Tench (Holt McCallany), também um instrutor do FBI, Holden propõe um estudo consistindo em entrevistar presos condenados por múltiplos crimes violentos para entender o que move esse tipo de criminoso.


A narrativa retrata uma mudança de abordagem no pensamento criminalístico empregado pelas agências de policiamento. A transição entre o modelo criminalístico lombrosiano (hoje considerado excessivamente determinístico) que vigorava desde o final do século XIX e uma abordagem que se apropria da psicologia social e da psicanálise para entender que todo criminoso é produto de um meio social que cria condições para seu surgimento. A novidade não é bem vista pelo FBI ou pelos policiais das diversas cidades pelas quais Holden e Tench passam como instrutores, com muitos considerando que eles estão "com pena dos bandidos" ou relativizando o crime, sendo que na verdade a compreensão do pensamento criminoso permite mais eficiência pra investigá-los.

A série faz um bom uso de sua ambientação setentista e do contexto da época. É um momento de baixa autoestima e ressaca moral para os Estados Unidos com o fracasso da guerra no Vietnã, os escândalos envolvendo Richard Nixon, o assassinato de Kennedy na década anterior e o terror urbano provocado por assassinos em série como Charles Manson, o Filho de Sam ou o Zodíaco. Se antes os EUA tinham certeza de sua soberania, naquele momento crescia a impressão de um país que perdeu seu projeto de nação e caminha rumo ao caos. Nesse sentido, há um claro paralelo entre esse período e os dias atuais com a ascensão de forças reacionárias e da ideia de "pós-verdade", guerras intermináveis e sem sucesso no Oriente Médio e a ameaça de terrorismo sempre à espreita, tal qual os assassinos de outrora.

Essas referências contextuais também se dão em um campo metalinguístico com os produtos da narrativa policial. Em uma cena do primeiro episódio Holden cita que dizer "apenas os fatos, madame" durante o interrogatório não basta mais. A frase era um bordão do detetive Friday, protagonista da série Dragnet que fez muito sucesso nos anos 50. A fala não está ali como easter egg, mas como um comentário metalinguístico de que a narrativa policial enquanto gênero narrativo superou aquele olhar simplista de outrora em relação à natureza do crime e à objetividade investigativa. Do mesmo modo, quanto Holden usa seus conhecimentos para ajudar a polícia de uma pequena cidade a desvendar uma série de assassinatos, um policial local o compara a Sherlock Holmes, demonstrando como certos arquétipos conseguem sobreviver mesmo quando o gênero se transforma.

Afinal, Holden é um sujeito extremamente inteligente, com grande capacidade dedutiva e acuidade mental, ainda que socialmente inepto e relativamente misantropo, tal qual o famoso detetive criado por Conan Doyle. Ao longo da temporada o personagem vai se perdendo na sordidez dos assassinos que entrevista e mesmo negando, o contato com aqueles sujeitos começa a afetar seu comportamento, tornando-o paranoico e bruto, por vezes tendo uma conduta que beira a sociopatia. O ataque de pânico ao fim da temporada funciona como um momento de implosão para o personagem, que finalmente sente emergir todos os sentimentos que ele empurrava para cantos escuros de sua mente, tentando se convencer que aquilo não o afetava.

A jornada do personagem também demonstra como esses métodos, apesar de úteis, tem suas limitações. Embora seja possível construir o perfil psicológico de um suspeito a partir de seus crimes, a trama sugere que é impossível determinar previamente se alguém se tornará um criminoso. Isso fica claro nos episódios em que Holden tem que lidar com um diretor de escola com uma conduta inapropriada. Apesar do modo que o sujeito lida com os alunos ser esquisito e pouco convencional, Holden não tem nenhuma evidência concreta de que ele comete algum tipo de abuso ou pode vir a cometê-los e ainda assim o agente faz uma escolha que destrói a vida do educador.

Igualmente afetado pelo trabalho é o agente Tench. Se o distanciamento dele entre a esposa e o filho adotivo parece ser por conta de suas viagens, aos poucos a trama vai deixando claro que as viagens são para ele uma fuga deliberada, que ele se afasta por medo que seu trabalho os transforme tal qual está acontecendo com ele. Esse tipo de jornada de perdição moral não é exatamente novidade, mas a série conduz tudo de maneira que é possível sentir o peso e os traumas se formando naqueles sujeitos e tornando crível a mudança que se abate sobre eles. É uma pena que a subtrama envolvendo Tench e sua ligação, ou falta dela melhor dizendo, com seu filho adotivo acabe sendo deixada de lado ao longo da temporada, já que ela poderia ajudar a enriquecer o personagem. Espero que as próximas temporadas deem um pouco de atenção a isso.

O arco da Dra. Carr, por exemplo, consegue ilustrar isso até de maneira imagética. Quando ela se muda para ficar próxima da sede do FBI ela passa a alimentar um gato que fica na lavanderia de seu prédio, deixando uma lata de atum aberta para que o animal se alimente. Ao longo da temporada ela repete essa ação alguma vezes até que um dia, ao invés da lata vazia, encontra a lata cheia de formigas e com o atum estragado. A cena serve como uma metáfora visual para o universo interno da personagem no qual até mesmo atividades cotidianas e que lhe davam alegria se tornaram eventos de pavor e sordidez.

A série acerta também na criação dos seus psicopatas, dando a eles personalidades e maneirismos bem distintos entre si, mas ao mesmo tempo conferindo-lhes características que tornam possível perceber padrões entre eles. Do patologicamente mentiroso Jerry Brudos (Happy Anderson) ao aparentemente cordial e carente Ed Kemper (Cameron Britton). É interessante perceber que inicialmente Ed fala de maneira extremamente educada e calma, mas conforme sua conversa vai de trivialidades aos detalhes gráficos de seus crimes (incluindo como introduziu seu pênis na cabeça decepada de sua mãe) e ele mantêm o mesmo tom de voz supostamente sereno, percebemos que aquilo não é polidez ou calma, ele simplesmente não registra empatia ou emoções e por isso sua voz sempre soa tranquila.

A primeira temporada de Mindhunter tinha tudo para ser só mais uma série policial, mas se sobressai das demais pela seu cuidado na construção de personagens e pelo seu olhar sobre o desenvolvimento das ciências criminais.


Nota: 9/10

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