segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Crítica – Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho

 

Análise Crítica – Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho

Review – Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho
A contravenção do jogo do bicho é um esquema que existe faz tempo no Brasil e ocupa um lugar de destaque principalmente no Rio de Janeiro, onde se originou. A série documental Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho, produzida pela Globoplay, conta a história desse esquema de jogo e como ele se relaciona com diversas dimensões da vida carioca, do carnaval à política, passando também pela origem de outros grupos criminosos.

Dividida em oito episódios, a série foca cada um deles em personalidades diferentes da contravenção, começando nas origens do jogo do bicho e encerrando nos dias atuais. Em termos estilísticos a série entrega aquilo já se tornou convencional em documentários sobre crimes, se estruturando ao redor de entrevistas, imagens de arquivo e ocasionalmente algumas cenas encenadas.

Apesar de tradicional em seu formato, o que chama a atenção na série é a ampla pesquisa jornalística feita sobre o caso, cobrindo um longo período de tempo e o amplo escopo da rede de crimes desses contraventores. A série nos mostra como é o jogo do bicho que amplia e organiza o carnaval carioca e o desfile das escolas de samba, não apenas ao assumirem e financiarem individualmente certas escolas de samba, mas na criação da Liga que representa o coletivo das escolas e organiza a competição. Do mesmo modo, vemos como muitos dos bicheiros da chamada “alta cúpula” do jogo tem ligação com vários políticos em posição de destaque no Rio e na política nacional.

Esses elementos ajudam a entender como a contravenção do bicho não é meramente uma ilegalidade nas margens da sociedade, mas está no centro dela e influencia vários níveis da vida pública fazendo outros grupos criminosos surgirem à sombra do jogo. Um exemplo é o chamado “Escritório do Crime” que seria supostamente liderado por Adriano da Nóbrega, ex-policial do BOPE, que comandaria um grupo de matadores profissionais que trabalhava para bicheiros e outros criminosos do Rio de Janeiro, com Adriano tendo também ligações com políticos, incluindo membros da família Bolsonaro. Entender o jogo do bicho seria, portanto, empreender um esforço de desvelar uma complexa teia de crimes e corrupção que mobiliza constantemente a vida pública brasileira, mesmo quando não sabemos que essas coisas tem ligação com a contravenção.

Outro trunfo da série é nos seus personagens e no acesso que conseguiram a figuras centrais do jogo. O documentário traz longas entrevistas com repórteres que cobriram o mundo do bicho, delegados e policiais que investigaram esse universo e, mais importante, as próprias lideranças do bicho e suas famílias que dão depoimentos em primeira mão e falam com uma sinceridade por vezes assustadora. O documentário conseguiu acesso a figuras que vão desde os membros da velha guarda da liderança do bicho, como o Capitão Guimarães ou Piruinha, e lideranças mais recentes como Bernardo Bello ou Shanna Garcia, filha do bicheiro Maninho assassinado em 2004 que luta para reaver o controle dos territórios do pai.

Essas fontes falam com extrema naturalidade dos crimes cometidos, de assassinatos por encomenda, traições e atentados, mostrando o quão banal essas coisas são no cotidiano da contravenção, como se estivessem se referindo a um simples procedimento burocrático de negócios. Algumas histórias impressionam por soarem tão grandiloquentes que soam mais como coisas que vemos em filmes do que eventos que se passam no mundo real, a exemplo do atentado a bomba que explodiu o carro do bicheiro Rogério Andrade, mas que acabou atingindo o filho dele. O documentário, por sinal, nunca é ingênuo ao ponto de simplesmente acreditar (ou nos pedir para acreditar) nas falas dessas pessoas.

A narrativa sempre recorre a outras fontes ou imagens de arquivo para corroborar as falas e também põe em dúvida e oferece contrapontos a certos testemunhos quando vê que os entrevistados estão tentando usar a exposição do documentário para descredibilizar denúncias contra eles ou prejudicar rivais. A maneira como a narrativa é estruturada deixa evidente para o espectador que essas pessoas estão ali primeiramente para servir os próprios interesses e para tentar direcionar a opinião pública a seu favor, sempre nos lembrando que não devemos confiar plenamente nessas pessoas.

Com uma pesquisa consistente e um escopo amplo dos impactos da contravenção, Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho é um daqueles documentários que nos lembra como a realidade pode ser mais chocante que a ficção.

 

Nota: 8/10


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