segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Crítica – Assassinos da Lua das Flores

 

Análise Crítica – Assassinos da Lua das Flores

Review – Assassinos da Lua das Flores
Sabemos que a prosperidade econômica dos Estados Unidos em parte se deveu ao genocídio indígena e o fato do país ter tomado as terras de vários povos originários na expansão rumo ao oeste. Mesmo com essa informação, a verdade é que ainda sabemos muito pouco sobre os massacres cometidos contra minorias no país que visavam não apenas tomar as riquezas desses povos como também impedir a formação de uma elite não branca. Assassinos da Lua das Flores, novo filme de Martin Scorsese, traz um mergulho profundo em um capítulo da história dos EUA que mostra como a riqueza dos brancos foi construída sobre o sangue e cadáveres de indígenas.

A trama é baseada na história real contada no livro homônimo escrito por David Grann e se passa no início do século XX no estado do Missouri, nas terras do povo Osaje, nação indígena deslocada para o centro do país durante a expansão para o oeste em terras que aparentemente não valiam nada. Quando petróleo é encontrado nas terras Osaje, o povo começa a prosperar, mas logo chegam uma série de empresários e trabalhadores brancos de olho na riqueza que os indígenas adquiriram. Um desses trabalhadores é Ernest (Leonardo DiCaprio), veterano da Primeira Guerra que chega para trabalhar com o tio, Bill Hale (Robert DeNiro), um empresário que posa de benfeitor, mas almeja obter controle sobre as concessões de petróleo indígenas.

Ernest é um sujeito intelectualmente limitado, mas aceita os conselhos do tio sobre como obter dinheiro fácil casando com uma indígena e manejando os fluxos de herança para ficar com as terras dos parentes da esposa. É assim que Ernest casa com Mollie (Lily Gladstone), uma jovem indígena que sofre de diabetes, e junto com o tio vai manipulando as mortes da família dela através de assassinatos e acidentes forjados para tentar ficar com tudo.

Sem pressa, Scorsese traça um amplo panorama do contexto social na região dos Osaje e como os brancos faziam todo o possível para arrancar cada centavo dos indígenas. De juízes que declaravam boa parte dos indígenas como incompetentes para gerenciarem o próprio dinheiro, colocando-os sob a tutela de brancos, passando por comerciantes que cobravam preços exorbitantes de bens e serviços comuns apenas para depenar o patrimônio dos indígenas. O filme deixa bem claro como essas ações são motivadas por racismo, com inúmeros personagens dizendo ser aceitável fazer todo o possível para empobrecer os indígenas por eles não terem feito “por merecer” a riqueza, como se aplicar golpes ou cometer assassinato fosse algum indicativo de mérito. Esses momentos evidenciam como a meritocracia proclamada nos EUA é algo pensado apenas para brancos.

Nesse sentido, o filme pondera inclusive o papel do cinema na disseminação dessas ideias e na construção de uma história deturpada na qual indígenas e negros são sempre vilões e os brancos são sempre heróis. Isso é percebido na cena em que Ernest e o tio assistem a um cinejornal que narra o “massacre da Wall Street negra” em Tulsa (que foi recentemente explorado na ficção em produções como Watchmen e Lovecraft Country) como uma revolta racial dos negros e não como um massacre étnico perpetrado por brancos para eliminar um bairro negro que estava começando a prosperar financeiramente, considerado o maior ato de terrorismo doméstico do país. O fato do cinejornal ser feito pela Fox News parece ser uma maneira jocosa de Scorsese comentar como a emissora de notícias atua na contemporaneidade para transmitir a mesma visão deturpada e preconceituosa até hoje.

Ao recorrer ocasionalmente em imagens em preto e branco com taxa de aspecto bastante estreita, remetendo a filmes do começo do século XX, Scorsese pondera sobre o lugar do cinema na escrita dessas visões históricas e na importância de revisar esse passado para corrigir os erros de outrora. O diretor inclusive se implica diretamente nesse processo ao aparecer em cena no final como locutor de um programa de rádio que narra a história de Ernest e Mollie, como se ele quisesse dizer que é papel dos cineastas e dos meios reparar o dano causado a essas minorias.

DiCaprio interpreta aqui um sujeito mais chucro e limitado do que ele costuma incorporar em seus personagens. Ernest é um sujeito pouco afeito a trabalho e não muito esperto, mas com o direcionamento do tio vê na exploração dos indígenas uma maneira fácil de ganhar dinheiro. Isso não significa que ele seja uma mera marionete, já que as tendências agressivas do personagem o levam a estruturar vários esquemas por conta própria, como assaltos e assassinatos, que raramente terminam bem justamente porque lhe falta intelecto para planejar direito seus golpes. 

A despeito de usar a diabetes de Mollie para controlá-la, “batizando” a insulina dela com substâncias que a deixam debilitada, Ernest parece ter alguma medida de afeto verdadeiro pela esposa, tanto que é por certa lealdade a ela que ele acaba se voltando contra o tio. Mesmo com essa guinada, o texto é inteligente para nunca tratar Ernest como algum tipo de anti-herói, sempre deixando claro que ele é um escroque que explorava a própria esposa e é covarde demais para admitir isso a si mesmo, algo que é visível no diálogo final entre ele e Mollie quando ela o indaga uma última vez se ele fazia alguma coisa com sua medicação. É como se ela desse ao marido uma chance final de se redimir e ele, talvez por covardia ou burrice, insiste em negar aquilo que a esposa já sabia. É uma dinâmica complexa entre esses dois personagens e o filme a trata com a maturidade necessária, evitando maniqueísmos fáceis. Aliás, todo o processo e investigação em Ernest e Hale que toma o terceiro ato do filme, acaba se alongando mais do que deveria e soa redundante em alguns momentos.

Há de se destacar também o trabalho de De Niro como Hale, um demagogo de fala mansa que posa como alguém preocupado como a comunidade, mas na verdade é um predador disposto a passar por cima de qualquer um para conseguir mais poder e dinheiro. Constantemente procurado pelos indígenas da região para ajudar a investigar os assaltos e assassinatos, Hale é o proverbial lobo cuidando do galinheiro e um exemplo de como muitas famílias brancas ricas dos Estados Unidos construíram uma imagem de benfeitores benevolentes enquanto forjavam suas fortunas com sangue e pólvora. A ganância e falta de escrúpulos de Hale o tornam verdadeiramente desprezível, mas De Niro, habituado a interpretar homens monstruosos, sabe como fazê-lo soar maligno sem descambar para a caricatura, trazendo uma humanidade que o torna bem real e nos remete a várias figuras poderosas do mundo real. Hale não é um vilão de cinema, mas uma metonímia para figuras que existiram e ainda existem no nosso mundo.

Em Assassinos da Lua das Flores Martin Scorsese constrói um vigoroso panorama a respeito das várias facetas do genocídio indígena nos Estados Unidos e como a prosperidade dos brancos se ergueu sob a égide dessas mortes.

 

Nota: 9/10


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