sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Crítica – A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício

 

Análise Crítica – A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício

Review Crítica – A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício
A primeira vez que ouvi sobre o caso de Elizabeth Holmes e a empresa Theranos fiquei surpreso como as pessoas acreditaram na promessa dela. Não sou médico ou engenheiro, mas o pequeno dispositivo chamado Edison que prometia fazer mais de 200 testes sanguíneos diferentes a partir de apenas uma gota de sangue sequer parecia ter espaço suficiente para comportar todos os componentes mecânicos, químicos e computacionais para fazer tantas operações complexas com confiabilidade. Produzido pela HBO, o documentário A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício desnuda os motivos disso: ninguém estava olhando para a ciência por trás do aparato, apenas para a performance de grande empreendedora de Holmes.

O documentário é inteligente ao não mostrar Holmes como um incidente isolado e sim como uma metonímia de todo o discurso mitificado sobre inovação e empreendedorismo que se construiu ao longo do século XX. Já em seus primeiros minutos o filme nos mostra como Thomas Edison construiu em torno de si toda uma performance para vender a imagem de um inventor genial, mesmo quando seus inventos não davam certo. A trajetória de Holmes, que tinha nomes como Edison e Steve Jobs como ídolos, se construiu em cima de uma performance semelhante.

A empresária não só tomou para si todos os clichês do empreendedorismo da indústria tecnológica, se vendendo como uma jovem prodígio que largou a faculdade para abrir uma empresa porque estava muito além daquilo que seus professores ensinavam. Também trazia consigo todo o discurso de empreendedora incansável, que não faz pausas para almoçar, é a primeira a chegar e última a sair e nunca tira dias de folga, como se isso fosse sinônimo de competência ou um atestado de que ela sabia o que está fazendo e não uma encenação. Do mesmo modo, ela copiou práticas de outros empreendedores, como o olhar fixo e voz forçosamente grave de Mark Zuckerberg ou a prática de usar sempre o mesmo tipo de roupa como fazia Steve Jobs para vender a ideia de que ela tem algum tipo de inteligência superior que está sempre ocupada com problemas complexos e não pode ser aborrecida com coisas mundanas como pensar no que vai vestir.

As pessoas que investiram nela e se mantiveram apoiando apesar de não apresentar progresso ou mesmo durante os anos de acusações de fraude o fizeram justamente por comprarem toda essa encenação. Afinal, ao longo de quase um século todo o discurso midiático ao redor de questões como empreendedorismo e tecnologia nos disse que grandes mentes agem e se parecem com alguém como Elizabeth Holmes. Com essa predisposição a acreditarmos que possa existir no mundo real alguém como o Tony Stark, bastou Holmes citar algumas platitudes vazias e citar algumas frases de efeito de Edison ou Jobs para todo mundo achar que ela era uma grande inventora.

Assim, o documentário não apenas mostra que esse mundo de startups do Vale do Silício é movido mais por aparências do que por competência. Há também a ponderação de que toda essa estrutura corporativa de startups de capital fechado, que não precisam ser transparentes como empresas de capital aberto apesar de receberem bilhões de investimentos inclusive do governo, torna muito fácil que fraudes sejam cometidas.

O retrato pintado aqui revela como muitos dos ditos entendidos em tecnologia não entendem como ciência e pesquisa científica funciona já que a Theranos nunca produziu ou publicou um estudo sequer sobre suas pesquisas para ser avaliado pela comunidade científica e como isso deveria acender um sinal de alerta em qualquer pesquisador sério. Afinal estamos falando de uma tecnologia que pode impactar a saúde das pessoas, então qualquer empresário responsável se preocuparia em garantir a segurança e eficácia do aparato. Holmes foi pelo caminho inverso e escondeu seu invento tanto de pessoas de fora da empresa, quanto dos próprios funcionários, que só tinham acesso a informações pertinentes ao seu departamento. Até mesmo o supervisor de pesquisa da empresa não tinha acesso a todos os dados e quando ele começou a fazer perguntas demais, foi judicial e moralmente assediado ao ponto do suicídio.

Como o documentário trata muito desse discurso mitificado sobre empreendedorismo e tecnologia, ele questiona editores de revistas como Fortune, que colocou Holmes na capa, para questionar como eles se deixaram levar pelo discurso dela. O resultado, porém, não necessariamente rende um mea culpa como feito em Escola Base (2022) e sim uma tentativa de deflexão do editor da Forbes, se dizendo enganado por Holmes. O documentário não pressiona essas fontes, deixando de indagar como esses veículos falharam em fazer perguntas básicas sobre o invento ou em repercutir como as falas dela eram vagas ao ponto de soarem incompatíveis com o fato dela supostamente ser uma inventora genial. A verdade é que por mais que Holmes tenha tapeado investidores e jornalistas, isso aconteceu porque essas pessoas estavam predispostas a comprar o discurso que a empresária tinha para vender.

Nesse sentido, senti falta do filme não ter conversado com o documentarista Errol Morris sobre a participação dele em uma produção laudatória a respeito da Theranos. Considerando que Morris é um documentarista veterano e ex-investigador particular, já tendo desmascarado fraudes em seus filmes (como o seminal A Tênue Linha da Morte), seria interessante ouvir como um sujeito tão experiente caiu na conversa de Holmes.

Ainda assim, A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício traz ponderações importantes sobre como o discurso de empreendedorismo e inovação facilita que fraudes consigam encontrar espaço para prosperar.

 

Nota: 7/10


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