sexta-feira, 4 de junho de 2021

Rapsódias Revisitadas – Morte em Veneza

 Análise Crítica – Morte em Veneza


Review – Morte em Veneza
Revendo Morte em Veneza, de Luchino Visconti, me surpreendi com o quanto alguns de seus temas soam terrivelmente atuais para os tempos pandêmicos em que vivemos. O filme também traz algumas reflexões sobre arte, beleza e permanência que, de certa forma, são atemporais.

A trama adapta um romance escrito por Thomas Mann. Sendo situada na virada do século XIX para o século XX, a narrativa é centrada na figura de Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) um pianista em meio a uma crise criativa, afetiva e de saúde. Para lidar com seus problemas Gustav viaja a um resort em Veneza e lá se encanta pela beleza do garoto Tadzio (Bjorn Andresen) e passa a segui-lo. Ao mesmo tempo, o músico começa a desconfiar que os funcionários do hotel talvez não estejam sendo sinceros quanto a severidade da epidemia de cólera que se espalha pela cidade.

A fixação de Gustav por Tadzio é sempre enquadrada em uma chave mais platônica e idealizada, nunca sexual. O interesse do músico é o da contemplação dessa beleza que emerge naturalmente do garoto, uma beleza que ele sempre tentou transmitir através de sua música, mas teve dificuldade. A trama pondera sobre a relação entre a beleza e o desgaste do tempo. Se a beleza nas artes requer trabalho, ela ao menos sobrevive a passagem do tempo. Por outro lado a beleza física de Tadzio emerge dele naturalmente, no entanto, é algo fugidio que se desgastará com tempo. As andanças de Gustav pela cidade para observar o garoto servem, portanto, como uma metáfora para a natureza fugaz da beleza.

De certa forma, a fixação de com Tadzio também pode se relacionar com a busca por uma juventude perdida. Isso é evidenciado pela cena em que Gustav vai a um barbeiro e se arruma para parecer mais jovem, colocando maquiagem no rosto e pintando os cabelos, como se esse retorno no tempo fosse resolver seus problemas. O final de Gustav, cumprindo a morte preconizada no título, demonstra, porém, que esse retorno, essa perenidade da juventude é impossível de obter. Enquanto o protagonista sofre com seus problemas de coração vemos a maquiagem derreter e a tintura do cabelo escorrer pelo seu rosto, desfazendo a fachada de juventude que ele tentou criar para si.

A trama envolvendo a epidemia de cólera é tão atual hoje quanto na época em que o filme foi lançado. Em suas andanças pela cidade Gustav vê ruas sendo desinfetadas, encontra folhetos de alerta colados nas paredes, mas os funcionários do resort em que o protagonista está insistem em dizer a ele que tudo está seguro. O negacionismo do hotel parte do discurso de que as atividades não poderiam parar, que se revelassem a verdade prejudicariam a economia do local, um discurso que infelizmente vimos ao redor do mundo e principalmente de autoridades brasileiras que tentam criar uma falsa dicotomia entre proteger vidas e proteger a economia. Ver que se falava sobre isso há cinquenta anos atrás é uma triste constatação de que o ser humano amadureceu muito pouco nesse tempo.

Outro elemento importante é a música de Gustav Mahler que permeia todo o filme, em especial o adagietto de sua quinta sinfonia (o filme também usa trechos da terceira sinforma de Mahler) que marca os momentos em que o protagonista contempla a beleza de Tadzio, incluindo a cena final. Os acordes lentos do adagietto contribuem para dar a dimensão dos anseios do protagonista, sempre em busca de algo que parece incapaz de alcançar.

Desta maneira, Morte em Veneza constrói uma reflexão impactante sobre o labor artístico, a busca pelo sublime e nossa relação com a vida e a morte.


Trailer

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