sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Crítica – Cidade Invisível

 

Análise Crítica – Cidade Invisível

Review – Cidade Invisível
Narrativas policiais e investigativas são costumeiramente calcadas em racionalidade, em um exame lógico-dedutivo de evidências para resolver um crime aparentemente sem explicação e demonstrar a onipotência da razão humana desvendar o mundo a nossa volta. A partir disso a ideia de misturar um gênero tão cartesiano e positivista com elementos de fantasia, como faz a série brasileira Cidade Invisível, poderia parecer contraprodutivo, mas não é a primeira vez que esses elementos convergem.

Tim Burton, por exemplo, já tinha misturado investigação e magia no bacana A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (1999), a série Supernatural em suas primeiras temporadas tinha esse misto de investigação e sobrenatural e Sleepy Hollow, série também baseada nas histórias do Cavaleiro Sem Cabeça, igualmente caminhava por esses dois gêneros. É portanto, perfeitamente possível convergir esses dois elementos, mas a questão é: Cidade Invisível consegue trabalhar bem mescla? A resposta é um sonoro sim.

A trama é centrada em Eric (Marco Pigossi), um investigador da polícia ambiental do Rio de Janeiro que perdeu a esposa em um misterioso incêndio florestal em uma vila próxima ao Rio. Depois da morte da esposa Eric começa a se deparar com eventos estranhos, como um boto cor de rosa (um animal de água doce) aparecendo morto em uma praia carioca. A partir daí, Eric começa a perceber elementos que pareciam estar ocultos em nosso mundo e descobre que histórias do nosso folclore, como o Saci, a Cuca e o Curupira, na verdade são bem reais.

O mistério central é envolvente e cada episódio sempre traz novas informações, que mantem a trama principal andando, ao mesmo tempo em que acrescentam outros questionamentos, sempre nos mantendo em suspense em relação ao que pode ter acontecido com a esposa de Eric e como essas entidades místicas se relacionam com tudo isso. Algumas reviravoltas, como o que acontece com a filha de Eric, são um pouco previsíveis, no entanto a série consegue nos manter em suspense pelo clima constante de mistério, de contato com o desconhecido e que mesmo uma pessoa aparentemente banal pode, na verdade, ser uma entidade poderosa.

Há um constante senso de que Eric está lidando com forças mais poderosas que ele e além de sua compreensão, o que dá um sentimento palpável de perigo. Parte disso é mérito do elenco, em especial o trabalho de Alessandra Negrini como Inês, uma mulher temida pelas entidades, que demonstra um grande poder e que parece estar interessada em Eric e no que aconteceu com a esposa dele. Negrini coloca em Inês uma ambiguidade que nos deixa incertos quanto a suas reais intenções. Estaria ela apenas querendo proteger os seus da mesma ameaça com a qual Eric se envolveu? Ou será que ela tem seus próprios objetivos sombrios?

Não é coincidência que as entidades sejam, em sua grande maioria, representadas por grupos marginalizados da população. O Saci é um ex-escravo, a Cuca é uma mulher que teve filho fora do casamento e foi marginalizada por isso, o Curupira é um mendigo. Pessoas que pelas normas sociais daqueles que detêm o poder são colocadas à margem da sociedade, invizibilizadas, tem sua existência e direitos praticamente negados. São, portanto, uma comunidade tão invisível quanto o próprio componente sobrenatural que representam, funcionam como um lembrete de como ignoramos ou soterramos parte de nossas raízes culturais bem como os problemas e desigualdades da sociedade brasileira.

Dentro de um país colonizado, que ainda reproduz um modo de pensar eurocêntrico, todos esses elementos comporiam uma “cidade invisível” como diz o título da série. Isso fica evidente quando é revelada a identidade do Corpo Seco e como ele se relaciona com a construtora que quer usar a floresta na qual a esposa de Eric morreu. A revelação remete a uma dinâmica de poder e dominação política/econômica que se mantem há décadas (e séculos), com as mesmas pessoas e famílias sempre no controle e com essas figuras de poder constantemente promovendo o extermínio e esquecimento daqueles às margens.

Desta maneira, Cidade Invisível é uma ótima mescla de fantasia e narrativa policial, resgatando a herança cultural brasileira e usando-a como metáfora social.

 

Nota: 8/10


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