segunda-feira, 19 de junho de 2017

Crítica - American Gods: 1ª Temporada

Resenha American Gods: 1ª Temporada


Review American Gods: 1ª Temporada
Narrativas não são apenas histórias que contamos uns aos outros para nos entreter e passar o tempo. Querendo ou não, a construção de uma narrativa está imbricada com os valores, ideias e visões de mundo daqueles que tecem o seu discurso. Imbuído nelas está alguma noção de verdade sobre o mundo, a natureza ou as relações humanas. Isso fica ainda mais evidente nas narrativas míticas. Os mitos olimpianos, nórdicos ou africanos não são apenas histórias sobre deuses, herois e vilões, elas falam sobre a concepção de mundo das sociedades que disseminaram essas narrativas, mostram quais os valores e ideias que eram caros àquelas pessoas, o que era considerado virtude e o que era considerado vício. Com o tempo algumas dessas histórias são esquecidas enquanto outras continuam a reverberar. Algumas seguem como eram, enquanto outras são modificadas para se adequar aos novos tempos. É exatamente sobre nossa relação com essas figuras míticas e divinas que trata a série American Gods, adaptação do romance Deuses Americanos de Neil Gaiman.

A trama é centrada em Shadow Moon (Ricky Whittle), um ex-condenado que tem sua liberdade condicional antecipada depois da morte de sua esposa, Laura (Emily Browning). Sem rumo na vida, acaba aceitando um emprego como motorista do misterioso Mr. Wednesday (Ian McShane), um golpista que contrata Shadow como motorista/assistente/faz-tudo. O protagonista sai em uma viagem através dos Estados Unidos ao lado do patrão, que aparentemente está tentando reunir antigos companheiros. Aos poucos vai sendo revelado que Mr. Wednesday está reunindo antigos deuses que caíram no esquecimento para travar uma batalha contra os novos deuses que dominam os EUA: a internet, a mídia e o mercado.

No universo da série a crença humana em deuses e seres fantásticos os faz existirem no nosso mundo. Esses deuses se tornam mais fortes conforme seus seguidores aumentam e enfraquecem quando as pessoas deixam de idolatrá-los ou usarem seus nomes. Os velhos deuses representados na série são exatamente isso, versões decadentes de seres outrora poderosos, que lutam para se manterem relevantes nos dias atuais. Um desses deuses é Bilquis (Yetide Badaki), a deusa do amor. Insegura e desesperada por atenção, Bilquis é quase uma mendiga de afetos, desejosa por agradar os humanos para poder ser reverenciada por eles.

O conflito central entre os velhos deuses e novos deuses não é apenas uma batalha por devoção humana ou um simples conflito entre o velho e o novo, é também um embate que diz muito sobre quem somos enquanto sociedade e o que valorizamos. Em um determinado episódio Wednesday diz à Mídia (Gillian Anderson, a eterna Scully de Arquivo X) que os antigos deuses ofereciam inspiração aos humanos enquanto que os novos apenas oferecem produtos, meras distrações para as angústias da vida, mas que em nada as resolvem.

Em seu esforço de recrutar aliados, Wednesday encontra alguns deuses que se aliaram aos novos e por isso foram reformulados ao novo contexto dos Estados Unidos. Vulcano (Corbin Bersen), ou Hefesto para os gregos, deus da forja, por exemplo se tornou o símbolo de uma marca de armas de fogo, mostrando como as forças dos novos deuses transformaram essa antiga figura em um produto a ser vendido e um símbolo da cultura armamentista estadunidense, revelando como os mitos e narrativas de outrora são reapropriados e reconfigurados para atender às mudanças da sociedade.

Ao contar como os deuses chegaram aos EUA através de imigrantes, a série também comenta sobre o processo de formação do país e como vários grupos sociais foram tratados historicamente, como acontece na cena que introduz Anansi (Orlando Jones). Invocado por escravos em um navio negreiro, o deus vê o futuro e através de um poderoso discurso avisa aos cativos os séculos de maus tratos, perseguição e preconceito que aguardam eles e gerações de seus descendentes, sugerindo que queimar o barco e morrer no naufrágio seria um destino melhor.

O aspecto visual da série impressiona tanto quanto as ideias que traz. Investindo em cores fortes e saturadas, cheio de tons de neon, a fotografia confere às imagens um caráter intensamente onírico, quase como se estivéssemos presenciando um delírio febril de alguém. Esse clima de sonho ou pesadelo é corroborado pela própria natureza insólita das imagens que a série cria, como a cena em que Bilquis "devora" um homem com sua vagina e posteriormente vemos o sujeito flutuando em meio a uma nebulosa de estrelas com sua ereção em riste. Igualmente insólitas são as visões de Shadow com uma imensa árvore e um búfalo com olhos flamejantes ou a intensa cena de sexo envolvendo um jinn.

Ian McShane confere um ar de mistério a Wednesday, bem como um certo charme cafajeste que torna compreensível o modo como ele consegue enganar as pessoas tão facilmente. Gillian Anderson está simplesmente camaleônica como Mídia, assumindo a forma de uma personalidade midiática (Lucille Ball, Marilyn Monroe, David Bowie ou Judy Garland, só para citar algumas) cada vez que se manifesta e incorporando com eficiência os maneirismos e modo de falar dessas figuras. Já Crispin Glover (sempre lembrado como o George McFly de De Volta Para o Futuro), faz do Mr. World uma presença imponente e instável, rechaçando com violência qualquer um que não siga exatamente aquilo que quer.

Em meio a tantos personagens insólitos e interessantes, o elo fraco acaba sendo o protagonista Shadow Moon. Durante boa parte da temporada Shadow serve basicamente como os olhos e boca do público, intrigado e confuso com o que vê, mas tirando isso é uma folha em branco. Não ajuda que a trama demore a nos dar um vislumbre do que Wednesday quer com ele e qual o seu papel em seus esquemas de guerra contra os novos deuses.

A trama em si, ou melhor a quase ausência dela, é outro problema. Os primeiros episódios introduzem uma ampla gama de personagens, cada um isolado do outro e demora a fazer as coisas convergirem ou mesmo deixar claro qual será o rumo da temporada. Durante boa parte dos episódios a série parece mais interessada em explicar as regras desse universo e como ele funciona, mas se prolonga demais em declarar que história quer contar nele. A trama principal (que é a busca de Wednesday por aliados) segue a conta-gotas e em doses homeopáticas, dando por vezes a impressão de que falta direcionamento e que a série está mais interessada em suas digressões sobre as origens dos deuses. Alguns episódios tem, inclusive muito pouco a acrescentar ao nosso entendimento sobre aquele universo ou personagens e considerando que a temporada só tem oito episódios, esse tipo de filler é inaceitável.

Um bom exemplo disso é o penúltimo episódio. Ao invés de preparar o terreno para o clímax que ocorrerá no episódio seguinte, o episódio faz uma grande digressão para contar a história de uma das imigrantes irlandesas que levou o leprechaun Mad Sweeney (Pablo Schreiber) aos EUA. A trama da imigrante em nada serve ao conflito principal, exceto espelhar a jornada de Laura Moon e como ambas tiveram suas vidas transformadas pelo leprechaun, mas não diz nada que outros episódios já não tinham dito. A única informação relevante do episódio inteiro é a revelação de que Sweeney estava envolvido na morte de Laura, o que explica muito das ações do personagem, mas contar a história da imigrante irlandesa de modo algum era necessário para chegar nesse ponto.

Apesar de muitos problemas de ritmo e de um protagonista que tem dificuldade de dizer a que veio, a primeira temporada de American Gods envolve pelo universo singular que cria, pela sua inventividade visual e pelo modo como usa esse cenário fantástico para falar sobre a formação de nossas identidades e quem somos enquanto sociedade. Exatamente o que se espera de uma narrativa mitológica.


Nota: 8/10

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