Piada explicada perde a graça
David Fincher é famoso pelo seu perfeccionismo e nem ele foi capaz de impedir que seu Clube da Luta (1999) fosse lido como um chamado ao retorno a um hipermasculinismo para reconstruir a ordem social e não como uma crítica a uma masculinidade que prefere criar uma seita terrorista e explodir o mundo a lidar com os próprios sentimentos. Há quem veja O Lobo de Wall Street (2013) como uma celebração da cultura de excessos da especulação financeira e não como a óbvia sátira que o filme é. Do mesmo modo, há quem goste de Coringa (2019) por ver o protagonista como um revolucionário se rebelando contra uma sociedade que o maltrata apesar do filme (e o próprio personagem) dizer explicitamente que ele não é nada disso.
Digo tudo isso porque este Coringa: Delírio a Dois parece ter sido feito com o único propósito de mastigar a mensagem do filme anterior apesar dele já ter comunicado isso. Eu entendo, deve ser frustrante ver um bando de incel sem letramento midiático disseminar uma leitura equivocada sobre um trabalho seu, mas é no mínimo ingênuo do diretor Todd Phillips achar que se explicar direitinho as pessoas que deliberadamente tiveram uma leitura oposta à materialidade do filme vão se dar conta que estavam erradas.
A trama acompanha Arthur (Joaquin Phoenix) depois dos eventos do primeiro filme. Ele está preso em Arkham e aguarda julgamento pelos assassinatos que cometeu. Lá ele conhece Lee (Lady Gaga), uma paciente que teve uma vida similar à sua e os dois se aproximam, encorajando Arthur a retornar à sua persona de Coringa. O grosso da trama se passa durante o julgamento de Arthur, que traz de volta personagens do primeiro filme, como Sophie (Zazie Beetz) e Gary (Leigh Gill) para explicarem os eventos passados sobre seu ponto de vista e deixar evidente como Arthur é um sujeito sinistro que os traumatizou para sempre.
O problema é que isso já estava no primeiro filme, que mostra explicitamente que Arthur é um narrador não confiável, que boa parte de suas interações com Sophie aconteciam em sua imaginação e que ele é um ególatra sádico que fez toda aquilo porque apreciava a atenção e o prazer da violência e não por justiça social ou qualquer coisa parecida. Assim, ao invés de levar adiante a história de Arthur, tudo que o filme faz é mastigar para o público as ideias do anterior como se não confiasse no espectador e resolvesse pegá-lo pela mão. É algo que não só esvazia esse filme, já que ele não tem nada a dizer que já não tenha sido dito antes, como também tira força do primeiro filme ao remover qualquer senso de nuance com seu excesso de didatismo ao explicar coisas que ficavam propositalmente ambíguas antes, como a morte da mãe de Arthur.
Amor Bandido
Antes que qualquer imagem do filme fosse divulgada já tinha muita gente reclamando do fato de que ele poderia ser um musical como se isso fosse um problema. É, de fato, um musical, já que são os números de canto e dança que movem os personagens e expressam o que eles sentem. São os melhores segmentos do filme, já que eles se abrem à subjetividade de Arthur e Lee e permitem externar o modo particular como eles se relacionam com o mundo. Essas cenas também são um espaço para o diretor Todd Phillips brincar com o imaginário dos musicais, com referências a filmes como Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) ou A Roda da Fortuna (1953), do qual utiliza a canção That’s Entertainment!.
Se o filme focasse mais no desenvolvimento da relação entre Arthur e Lee, cuja progressão nos faz questionar quem está manipulando quem, talvez pudesse render alguma coisa, mas o filme prefere perder tempo repetindo um monte de coisas do primeiro. Lady Gaga é eficiente em construir a ambiguidade de Lee, que inicialmente soa como uma coitada tirada de sua apatia por Arthur e influenciada por suas piores facetas, mas conforme aprendemos mais sobre ela percebemos como ela não parece ter um interesse real em Arthur e sim na destruição que ele pode causar como Coringa. A informação que ela vem de uma família rica poderia ser usada para explorar questões de classe social, mas o filme não faz nada com isso.
De maneira semelhante, a ideia de que Lee e boa parte das pessoas que passam a idolatrar Arthur não tem interesse no sujeito real e sim no que ele pode fazer como Coringa, assim como todo o circo midiático que é feito em torno de seu julgamento, poderia ser usado para ponderar sobre como a comunicação de reduz tudo a espetáculo e constrói imagens que não correspondem à realidade. Se explorasse isso o filme talvez conseguisse dar mais peso ao final trágico que Arthur recebe justamente por não corresponder às expectativas que seus seguidores insanos tinham dele, tornando-o uma vítima do próprio discurso de violência.
O final é prejudicado também porque a guinada de consciência dele não é devidamente construída. Considerando que desde o primeiro filme Arthur é desenvolvido como alguém que aprecia a atenção e admiração que seus atos violentos despertam em muita gente, é difícil crer que bastaria ver os guardas de Arkham matando um colega detento por sua causa que ele deixaria de lado sua egolatria destrutiva. Como a guinada do personagem não soa crível, o final perde o impacto.
A despeito da energia caótica do
amor bandido entre seus dois protagonistas, Coringa:
Delírio a Dois se equivoca ao se limitar a revisitar os eventos do primeiro
filme e o excesso de didatismo com o qual tenta se comunicar. Como uma piada
que é explicada depois de ser contada, perde totalmente a graça.
Nota: 4/10
Trailer
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