segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Crítica – Vidas Passadas

 

Análise Crítica – Vidas Passadas

Review – Vidas Passadas
Nossa concepção de amor romântico gira muito em torno da noção de “alma gêmea”, da ideia de que num mundo com bilhões de pessoas existe uma única pessoa que está destinada a nós e que quando a conhecermos sentiremos um amor tão arrebatador que não teremos outra reação que não perceber que essa é nossa “alma gêmea”. Vidas Passadas, no entanto, indaga sobre essa concepção pensando o quanto do amor e de relacionamentos são uma questão de um momento ideal, de encontrarmos uma pessoa em um tempo específico e em um momento específico e dessa conveniência espaço-temporal que surgiria um relacionamento duradouro. Quando algo não se encaixa, mesmo quando há amor, muitas vezes a relação pode não ir adiante e essas pessoas podem seguir caminhos diferentes, construir vidas com outras pessoas.

A trama é protagonizada por Nora (Greta Lee), uma mulher coreana que imigrou para o Canadá quando tinha doze anos, deixando para trás sua paixão de infância, Hae Sung (Teo Yoo). Alguns anos depois Nora reencontra Hae Sung pela internet e eles retomam a conexão de juventude, mas eles estão por demais focados em seus cotidianos e não tem meios para se reencontrarem presencialmente, então Nora decide se afastar um pouco e dar atenção a carreira que está começando nos Estados Unidos. Algum tempo depois Nora se casa com o escritor Arthur (John Magaro) e anos se passam até que ela retome contato com Hae Sung, que decide ir aos Estados Unidos para vê-la.

É uma narrativa de ritmo bem deliberado, com muitos momentos de silêncio e bem focada na dinâmica desses três personagens. Por essa descrição poderia até soar como um filme parado, em que nada acontece, mas a verdade é que a trinca de atores tem muito a dizer mesmo em silêncio, com seus olhares, corpos e movimentos comunicando muito dos estados de ânimo dessas pessoas. É também um filme que foge da maioria dos clichês e desenvolvimentos típicos de histórias sobre triângulos amorosos para produzir uma reflexão bastante madura sobre relações afetivas, histórias pessoais e as complexas nuances do amor.

Desde a primeira vez em que conversa com Hae Sung via Skype, a performance de Greta Lee evidencia como Nora fica radiante ao vê-lo e como a conexão entre os dois, apesar de terem ficado uma década sem se falar, é instantânea e intensa. Ao mesmo tempo, Lee nos deixa perceber um senso de deslocamento em Nora, como se a personagem sentisse que Hae Sung não “cabe” em sua nova vida, como se seu estilo de vida propriamente nova-iorquino já não se encaixasse com a vida coreana de Hae Sung. É algo que Nora conversa depois com o marido, que falar com Sung a faz sentir mais coreana e menos coreana ao mesmo tempo. Porque ele a lembra de quem ela um dia foi e do que ela deixou para trás e também porque ele espera dela algo que ela não é mais.

Do mesmo modo, apesar de Arthur falar de modo bem tranquilo que Nora deveria encontra Hae Sung quando ele chegasse e brincar dizendo que a esposa tem com o antigo amigo uma história de amor mais interessante que o casamento deles, (se conheceram em uma residência artística, foram morar juntos pra economizar e casaram para facilitar o Green Card dela) há uma ponta de tristeza e receio na fala dele, como se uma parte de si temesse de fato perder a esposa. Isso fica visível no modo como o corpo de Arthur balança ao ver Hae Sung em sua casa pela primeira vez, é um momento bem breve, mas que mostra o impacto (e a tentativa de Arthur em conter seu sentimento) de que é tudo bem real, que Hae Sung é um homem atraente que gosta de sua esposa e de quem sua esposa gosta.

John Magaro nos permite perceber toda a melancolia que há em Arthur apesar dele sempre se manter amigável e sincero com Hae Sung, entendendo o que há entre ele e Nora apesar de claramente se sentir deslocado entre os dois e perceber que eles têm uma conexão que ele próprio nunca terá com ela simplesmente porque Hae Sung a conheceu em um lugar e momento muito diferente da vida dela. Por mais que Arthur arranhe algumas palavras em coreano, aprecie a cozinha e cultura do país ou tenha uma boa relação com os sogros, ele nunca irá suprir essa faceta de Nora em relação a sua herança cultural como Hae Sung supre e Arthur sabe disso, ele sabe que não pode competir com isso e nem tenta.

Esse senso de deslocamento de Arthur é explicitado pelas escolhas de enquadramento na cena em que os três vão a um bar e Nora começa a conversar em coreano com Hae Sung. Se o plano começa aberto, enquadrando os três personagens, embora colocando Arthur ao lado de Hae Sung e Nora, já mostrando que ele está a margem da conversa, a cena logo corta para um plano mais fechado enquadrando apenas Hae Sung e Nora, com Arthur praticamente invisível, ocasionalmente aparecendo no fundo do quadro, literal e metaforicamente escanteado. É como se naquele momento, quando Nora conversasse com Hae Sung, apenas ele existisse e o universo compreendesse apenas aqueles dois. Na verdade, durante todo o segmento em que os três saem juntos, Nora sempre é filmada ao lado de Hae Sung, com Arthur ficando ao fundo ou do outro lado da mesa, como se ele, não Hae Sung, fosse o elemento externo daquela dinâmica.

Ainda assim, durante toda a longa conversa com Hae Sung em que eles ponderam em coreano, longe do entendimento de Arthur, sobre o que poderiam ter sido, ambos aos poucos se dão conta do que eles tem é exatamente isso: um passado, não um presente. Uma conexão que sempre terão, um afeto que sempre existirá, uma atração que os impele ao outro, mas é algo construído em cima de quem foram, não de quem são. É uma conexão de uma vida passada que não tem substância suficiente para se concretizar no presente. É daí, provavelmente, que deriva o choro de Nora ao final, amparada por Arthur. Da dor de mais uma vez deixar uma parte de si, reconhecendo que isso não tem volta e que ela e Hae Sung jamais retornarão ao ponto em que se separaram, ao mesmo tempo em que reconhece que esse sentimento sempre irá existir e que sempre carregará essas experiências consigo por mais que seu presente a coloque em outro caminho.

Com uma condução cuidadosa da diretora Celine Song e excelentes performances de seu trio principal, Vidas Passadas é uma ponderação madura sobre as complexidades das relações afetivas, de como mudamos ao longo da vida, mas permanecemos indelevelmente conectados ao que deixamos pelo caminho.

 

Nota: 10/10


Trailer

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