segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Crítica – Pobres Criaturas

 

Análise Crítica – Pobres Criaturas

Review – Pobres Criaturas
Uma mulher artificial sai de sua existência protegida para experimentar o mundo real e vivencia os desafios de uma mulher. Essa é a premissa de Barbie (2023), mas se aplica também a Pobres Criaturas, novo filme do diretor grego Yorgos Lanthimos. Como em outros filmes do realizador, a trama é permeada por um olhar ácido sobre a existência humana e um senso de humor bastante sombrio.

A trama é focada em Bella (Emma Stone), uma garota criada pelo cientista Godwin (Willem Dafoe) a partir de um cadáver reanimado. De início Bella é como um bebê, andando com dificuldade e balbuciando algumas poucas palavras. Com o tempo, porém, ela vai se desenvolvendo rapidamente e Godwin contrata o jovem médico Max (Ramy Youssef) para monitorar o progresso de Bella. A jovem, no entanto, se cansa da existência excessivamente protegida e decide fugir da mansão de Godwin, iniciando uma viagem pelo mundo.

Bella se joga no mundo ávida por aprender, sem qualquer noção de traquejo social, mas com o raciocínio metódico que aprendeu de seu “pai” Godwin. Essa combinação rende momentos bem divertidos conforme ela dá respostas diretas e pragmáticas, mas que quebram qualquer senso de decoro. Sua vida de isolamento significa que ela é alheia aos tabus da sociedade de sua época, o que significa que ela não se conforma (e nem deseja se conformar) com a postura que a sociedade espera de uma mulher, questionando o estado das coisas sempre que lhe impõem alguma barreira construída em nada mais do que convenções sociais machistas.

Isso se reflete principalmente na relação de Bella com o advogado Duncan (Mark Ruffalo), com quem se envolve por inicialmente achar divertido seu jeito devasso. O mulherengo Duncan acaba se apaixonando pelo espírito livre de Bella e logo deseja que ela se comporte como uma esposa dócil e faça somente o que ele quer. O filme também se debruça sobre outras questões como desigualdades sociais ou exploração do trabalho, mas essas nem sempre são tão bem desenvolvidas quanto as que se relacionam como a experiência de mundo das mulheres. Ruffalo, inclusive, é responsável por muitos momentos cômicos devidos à conduta histérica de Duncan pelo modo como Bella lida com o mundo.

O segmento de Alexandria, por exemplo, lida de modo muito superficial com questões de desigualdades de classe e a moralidade de uma vida de conforto material diante disso. Os problemas vem tanto da superficialidade do texto quanto da performance do comediante Jerrod Carmichael que interpreta Harry, guia de Bella por esse segmento. Falta a Carmichael um senso de desencanto e cansaço que ajudasse a situar o cinismo de Harry em alguma motivação ou emoção palpável. Ao falar sobre suas visões de mundo o personagem (e o filme) mais parece estar palestrando para o espectador do que efetivamente externando como se sente sobre a humanidade.

É, porém, um segmento de um filme recheado de um senso de ironia sombria a respeito da condição humana e como tratamos uns aos outros enquadrado sob o humor seco de Bella. A atriz Emma Stone ilustra o desenvolvimento cognitivo de Bella a partir de seu corpo. A personagem começa com um andar desajeitado e movimentos erráticos, sua fala soa demasiadamente gutural, como se não soubesse produzir os sons dos fonemas apropriadamente. Conforme a trama progride Bella vai ficando mais articulada em sua fala e seus movimentos se tornam mais seguros. A atriz também confere uma ingenuidade e senso de descoberta no olhar de Bella que nos convence que estamos diante de alguém experimentando o mundo pela primeira vez, se encantando com as pequenas maravilhas e se apavorando com seus cantos mais sombrios.

Esse senso de descoberta é construído também pela condução de Lanthimos. O filme começa em preto e branco, mostrando o cotidiano enclausurado e sem qualquer felicidade ou prazer da protagonista e se torna colorido assim que ela foge. A fotografia recorre bastante ao uso de grandes angulares que curvam as bordas do quadro conota o modo “distorcido” e não convencional com o qual Bella experimenta o mundo. Do mesmo modo, lentes “olho de peixe” são usadas para simultaneamente distorcer a perspectiva como reduzir o campo imagético e nos comunicar da sensação de aprisionamento (literal ou metafórico) de Bella. O filme também chama atenção pelo design de produção que cria uma versão alternativa da Europa do século XIX com elementos que combinam steampunk, fantasia e ficção científica, gerando um universo tão singular quanto seus personagens pitorescos.

Apesar de todo o excesso e momentos de absurdo, o filme sabe se conter para construir de maneira mais consistente a jornada de aprendizado de Bella, que vai se tornando mais segura de si, mais no domínio sobre suas próprias emoções e mais certa do que quer ou não da vida. O arco da personagem é um sensível lembrete de que não importa nossa origem, como ou por quem fomos criados, e sim como nos agimos no mundo.

Ancorado por uma performance intensa de Emma Stone, Pobres Criaturas examina a condição humana transitando entre a comédia de absurdo e o drama para entregar uma jornada agridoce e excêntrica sobre como encontramos nosso lugar no mundo.

 

Nota: 9/10


Trailer

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