quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Crítica – Sally: Fisiculturismo e Assassinato

 

Análise Crítica – Sally: Fisiculturismo e Assassinato

Review – Sally: Fisiculturismo e Assassinato
A essa altura serviços de streaming já tem um formato praticamente pronto de séries documentais sobre crimes, basta pegar uma história qualquer em encaixar na estrutura pré existente. Essa é a impressão que passa a minissérie Sally: Fisiculturismo e Assassinato que, como a maioria das séries documentais sobre crimes, se constrói em cima da mesma estrutura de depoimentos e imagens de arquivo, além de um número de episódios maior do que seria necessário para contar a história.

A trama segue a fisiculturista Sally McNeil, que na década de noventa foi presa depois de matar o marido a tiros quando ele tentava agredi-la. A série usa o evento para falar sobre machismo e sensacionalismo midiático. Como já mencionei, a estrutura é bem típica e acomodada no que se tornou padrão desse tipo de produto, arriscando ou ousando muito pouco. Também se tornou típico estender a história mais do que necessário, com muitos elementos redundantes ou que acrescentam pouco à narrativa principal, inchando o produto desnecessariamente. Poderia ser um longa documental conciso de cerca de noventa minutos, mas os realizadores desnecessariamente alongaram o material para render três episódios de cerca de cinquenta minutos.

O que se destaca na série é a discussão de como Sally foi tratada durante o julgamento e como a questão da violência e feminicídio foi removida da discussão a respeito do crime que ela cometeu. Em parte porque na época esses temas não eram tão presentes nas discussões sociais e parte porque as pessoas julgavam Sally por sua aparência e estilo de vida. Apesar de anos sofrendo violência nas mãos do marido e de afirmar tais fatos, a imprensa e promotoria prefere ignorar todos esses elementos simplesmente por ela ser uma mulher musculosa e forte, como se violência doméstica e violência contra a mulher fosse apenas uma questão de força e não de dominação patriarcal.

Aliás, a visão patriarcal se apresenta plenamente no discurso do promotor, que faz conclusões sobre as intenções de Sally no momento do crime a partir de elementos circunstanciais e praticamente a culpa pelas agressões dizendo que ela deveria ter simplesmente deixado o marido ou aceitado as múltiplas traições. O promotor chega a categoricamente afirmar que não era um caso sobre questões de gênero, quando claramente era sobre gênero. Claro, Sally não era exatamente indefesa e tinha seu próprio histórico de agressividade e o segundo disparo pode ser considerado excessivo, mas isso por si só não negaria a possibilidade de violência doméstica nem a duríssima condenação que ela recebe.

O caso revela certas hipocrisias sobre o discurso de posse de armas e de armas como instrumento de defesa. Não menciono isso para defender esse discurso, não é um ponto que eu necessariamente concordo, mas é um ponto de vista comum e bastante presente nos EUA, principalmente na época em que os fatos aconteceram.

Apesar dos EUA ter um grande lobby defendendo que é legítimo um cidadão querer, ter e usar armas de fogo para se defender, a história de Sally mostra como esse direito (afinal está na constituição do país) é facilmente criminalizado e tratado com suspeição quando o usuário não pertence a um grupo dominante. O fato de Sally ter uma arma em casa é tratado pelo promotor não como uma ex-militar querendo defender a si ou a família, mas como um claro indicativo de que ela queria matar o marido e tinha conduta homicida. Será que um homem que tivesse uma arma em casa seria tratado da mesma maneira? Como ela é uma mulher, toda o discurso de que armas são instrumento de defesa sequer é considerado e a posse de arma é tratada como indicativo de uma personalidade violenta. É algo que deixa evidente o duplo padrão de julgamento com o qual a sociedade trata homens e mulheres.

A série ainda apresenta um inesperado mea culpa de uma repórter que cobriu o julgamento nos anos 90, admitindo que o interesse da cobertura é mais no choque e no sensacionalismo. Através das imagens de arquivo vemos como o olhar da mídia para Sally era desinteressado em questões de violência doméstica e mais em mostrar essa mulher musculosa que fazia fisiculturismo e luta livre como uma agressiva descontrolada ou como uma criatura aberrante. Como diz a repórter em uma das entrevistas, não havia qualquer preocupação em retratar Sally como um ser humano ou a complexidade da situação em que ela se encontrava.

Assim, apesar de desnecessariamente longo e não fazer muito para ir além dos padrões desse tipo de documentário, Sally: Fisiculturismo e Assassinato ao menos consegue produzir algumas reflexões interessantes sobre machismo e cobertura midiática.

 

Nota: 6/10


Trailer

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