quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Crítica – Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile

 

Análise Crítica – Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile

Review – Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile
O título nacional deste Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile não reflete completamente a natureza da seita que retrata. A seita de fato tem práticas de extrema direita e até apoiou o regime de Pinochet, mas eles não eram efetivamente nazistas. O título original inclusive não contém a palavra “nazista” e sim “uma seita alemã no Chile”. Talvez os responsáveis pelo título nacional acharam que nazista chamava mais atenção ou talvez eles tenham achado que nazista e alemão é a mesma coisa (o que seria altamente preconceituoso). De todo modo, não espere encontrar nazistas aqui, embora seja uma história cheia de coisas horríveis.

Dividida em seis episódios a série conta a história da Colônia Dignidade, uma colônia de alemães no interior do Chile que abrigava uma comunidade de cristãos ultraconservadores liderados por Paul Schafer. O líder resolveu vir com sua seita para o Chile depois de se tornar procurado pelas autoridades alemãs por pedofilia. Chegando em seu novo lar, Paul resolveu construir boas relações com a comunidade local construindo um hospital para atender a população carente da região. Isso também facilitava o recrutamento e muitas vezes crianças que chegavam ao hospital não eram devolvidas às famílias, ficando ilegalmente sob a tutela da seita de Paul.

O documentário mostra como toda a estrutura da seita era pensada para facilitar o acesso de Paul às crianças e deixá-las facilmente sob seu controle. As crianças da comunidade eram separadas dos pais no nascimento e os pais não podiam se identificar para as crianças como pais delas. Paul era, portanto, a figura paterna dessas crianças, inclusive dando banho nos garotos, preparando eles para os eventuais abusos que ocorreriam quando estivessem na idade certa. A seita também era bastante misógina, tratando as mulheres como pecadoras, preguiçosas e indignas, tudo pensado para afastar os jovens das garotas e criá-los para sempre desconfiarem de mulheres, mantendo esses garotos sob as garras de Paul.

Se tudo isso parece horrível demais, saibam que é apenas a superfície. As coisas ficam muito piores depois da eleição de Salvador Allende. Como o presidente chileno prometia uma reforma agrária expropriando grandes latifúndios, Paul temeu que isso interferisse em suas “atividades” e participou ativamente do golpe que levou Augusto Pinochet ao poder, inclusive fabricando e traficando armas da Alemanha com ajuda do BND (o serviço federal de inteligência do país), mostrando como potências do norte global tiveram influência dos regimes autoritários que flagelaram a América Latina na segunda metade do século XX.

Depois do golpe, Paul e sua seita continuaram a ativamente apoiar Pinochet, cedendo suas instalações para serem usadas como campos de detenção e tortura ilegais (alguns membros da seita faziam as torturas). Os presos políticos mortos eram desovados em áreas pouco usadas do terreno e posteriormente os restos mortais eram destruídos usando napalm (como se a situação já não fosse aterradora do suficiente) para que não sobrasse qualquer vestígio.

É um circo de horrores e o documentário sustenta com evidencias documentais e testemunhas, sempre apresentando esses dados para basear as acusações das violências narradas. É uma estrutura documental bem padrão, com entrevistas, narrações e imagens de arquivo, que em geral funciona para dar conta dos elementos factuais. A montagem tem algumas boas ideias, intercalando testemunhos dos abusos cometidos por Paul com antigas imagens publicitárias da colônia que mostravam uma idílica e inocente vida campestre, mostrando como predadores se escondem sob um verniz de “cidadão de bem” defensor de “valores cristãos”.

Por outro lado, essas escolhas que arriscam pouco dentro do formato documental não são suficientes para dar conta do peso dos horrores perpetrados naquele local, principalmente no que se refere à colaboração com a ditadura chilena. São eventos de uma dor e pavor inimagináveis por basicamente dois motivos. O primeiro é que são ações tão desumanas que chega a ser difícil imaginar como é passar por isso. O segundo é por conta da ausência de vestígios, do apagamento de qualquer memória material desses eventos, constituindo uma espécie de dupla violência, a dos atos em si e a do apagamento desses atos.

É uma tendência contemporânea do documentário de tentar ir de encontro a esse inimaginável (ou irrepresentável, como diria Jacques Ranciere). De reconhecer essas ausências, essas lacunas e então fabular a respeito delas, dar a elas outro tipo de materialidade que se refira a essa dupla violência. Valsa Com Bashir (2008) recorre à animação para colocar o espectador no olhar subjetivo das vivências de soldados israelenses na guerra do Líbano. Em A Imagem Que Falta (2013), o diretor Rithy Pahn mistura testemunhos e imagens de arquivo com maquetes e bonecos de barro para tentar mostrar as atrocidades cometidas pelo Khmer Vermelho no Camboja. Aqui, no entanto, não há qualquer tentativa de ir além das escolhas estéticas padrão de um documentário para tentar representar os horrores narrados e isso talvez ajudasse a dar mais peso às denúncias.

Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile é um relato envolvente e chocante sobre os horrores cometidos por uma seita alemã ao longo de décadas, ainda que o excesso de adesão aos lugares comuns do documentário não deem a certos eventos o devido impacto.

 

Nota: 7/10


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