segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Rapsódias Revisitadas – O Nome da Rosa

 

Análise Crítica – O Nome da Rosa

Escrito por Umberto Eco, o romance O Nome da Rosa promoveu a quebra de uma série de paradigmas quando foi lançado em 1980. Era uma narrativa policial passada no período medieval protagonizada por um detetive arguto, extremamente racional, nos moldes de Sherlock Holmes, que, ainda assim, falhava em desvendar o crime e encontrava o culpado apenas por acidente. Isso colocava em questão a exaltação à racionalidade feita pelo gênero, ponderando sobre a complexidade e a não linearidade do conhecimento.

Com o sucesso feito pelo romance era inevitável que houvesse uma adaptação para os cinemas. Em 1986 foi lançada a adaptação para cinemas dirigida por Jean-Jacques Annoud e estrelada por Sean Connery. O filme era um pouco mais convencional do que o romance, já que nele o protagonista de fato resolvia o crime, inclusive já explicando a resolução na metade da narrativa enquanto os líderes da abadia na qual os assassinatos aconteciam se recusavam a acreditar nas deduções do protagonista. Deduções essas que vinham se confirmar ao final. Desta maneira, a versão para os cinemas de O Nome da Rosa não tem o questionamento de paradigmas das narrativas investigativas trazida pelo livro e com isso boa parte do impacto do texto de Eco, mas isso não o faz ser necessariamente um produto ruim.

A trama se passa no interior da Itália do século XIV em uma isolada abadia beneditina que está prestes a sediar uma mediação entre oficiais da Igreja Católica e lideranças franciscanas. Antes do início deste fórum, no entanto, mortes misteriosas começam a ocorrer na abadia e o frade William de Baskerville (Sean Connery) é chamado para resolver os crimes. Assessorado pelo jovem assistente Adso de Melk (Christian Slater), William encontra resistência dos residentes da abadia e suspeita que as lideranças locais tem algo a esconder.

Já pelo nome é possível perceber que o protagonista referencia as narrativas de Sherlock Holmes, já que a proveniência de William remete a mais famosa história do detetive criado por Conan Doyle: O Cão dos Baskerville. William é basicamente uma versão medieval de Holmes, de seu extremo racionalismo à sua misantropia. Sean Connery traz intensidade e urgência ao personagem, que percebe que há algo errado na abadia e sabe o que pode acontecer se ele falhar, algo que fica ainda mais evidente com a chegada da Inquisição, que começa a prender e torturar camponeses pobres de uma vila próxima acusando-os de serem responsáveis pelos crimes.

Visualmente o filme nos deixa imersos em um constante clima de tensão e mistério por conta dos corredores escuros da abadia. Um lugar sombrio e claustrofóbico que aparenta guardar segredos terríveis. O aspecto grotesco das mortes contribui para o senso de urgência e para dar peso ao clima de pavor que toma o local, nos deixando em dúvida se há algo sobrenatural em jogo ou se tudo foi obra humana. Isso nos ajuda a crer nas reações dos religiosos da abadia, que correm para dizer que tudo foi obra de alguma entidade demoníaca ou fruto de algum pecado grave cometido no local.

A trama mostra o obscurantismo da Igreja, fechada em seus muros e dogmas, mais preocupada com o poder e prestígio do que em efetivamente ajudar a população. Os líderes religiosos com os quais William interage tem uma postura elitista, como se estivessem acima da população, e usam o conhecimento de anos de estudo para dominar, não para libertar. Isso se torna ainda mais evidente com a descoberta da labiríntica biblioteca da abadia, cuja decisão (já contida no livro de Eco) de fazê-la um espaço gigantesco no qual é fácil se perder e perder o que se está procurando já traz em si a dupla potência desse tipo de lugar.

Por um lado isso revela a natureza intertextual e interdisciplinar do conhecimento. Como diz Adso no livro de Eco (uma frase que inclusive usei como epígrafe na minha tese de doutorado), livros sempre falam de outros livros, remetem a outros saberes, conhecimentos e outras formas de ver o mundo e isso nos desperta para lermos mais conhecermos mais. Nesse sentido uma biblioteca seria esse espaço rizomático no qual entraríamos para conhecer uma informação e iríamos navegando por várias outras. Por outro também pensa a biblioteca e acumulação de livros em espaço fechado como uma ocultação do conhecimento. Algo propositalmente obtuso e de difícil acesso para que a maioria das pessoas não consiga ou não tenha interesse de obter o que está ali depositado.

Esse segundo sentido fica evidente na reviravolta final que envolve um livro perdido de Aristóteles. Apesar de ser uma abadia de pesquisadores, o que eles estavam fazendo ali era ocultar o conhecimento. Eles sabiam do poder da informação, da força transformadora das artes, da capacidade crítica do riso e por isso enterraram conhecimento valioso para que isso não se difundisse e fosse usado para questionar o poder da Igreja. Negar o conhecimento, a ciência e as artes como estratégia de manter no poder é lamentavelmente algo que ainda está presente no mundo contemporâneo, uma postura adotada por alguns líderes mundiais surgidos nos últimos anos e que só reforça a relevância das ideias apresentadas em O Nome da Rosa.

Mesmo sem ter o mesmo impacto do romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa é uma narrativa investigativa cheia de tensão e suspense que pondera sobre a importância do conhecimento.


Trailer

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