quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Rapsódias Revisitadas – Uma Mulher é Uma Mulher

Resenha – Uma Mulher é Uma Mulher

Review – Uma Mulher é Uma Mulher
Dirigido por Jean-Luc Godard um ano depois de Acossado (1960), filme que o lançou em evidência no mundo todo, este Uma Mulher é Uma Mulher segue a tendência iconoclasta do diretor em brincar com as convenções dos gêneros hollywoodianos. Se em Acossado Godard jogava com a iconografia do noir, aqui Godard joga com os elementos típicos do filme musical.

Na trama, Angela (Anna Karina) é uma dançarina que sente o desejo de ter um filho, mas o namorado dela, Emile (Jean-Claude Brialy), está hesitante. Emile sugere que Angela tenha um filho com Alfred (Jean-Paul Belmondo), melhor amigo dela. Angela acaba achando a sugestão uma boa ideia e isso logicamente cria uma crise no relacionamento dos dois. Boa parte das razões pelas quais o filme é tão lembrado é pela direção iconoclasta de Godard, mas não se pode negar o carisma do trio principal, especialmente Anna Karina, envolvente e encantadora como Angela, convencendo de como sua personagem seria capaz de mobilizar a atenção dos homens ao seu redor.

Para que eu explique o jogo que Godard faz com o musical, eu preciso primeiro lembrar das especificidades desse gênero. No musical o foco do filme são os números de canto e/ou dança. São esses números que guiam o desenvolvimento dos personagens e movem a narrativa adiante.

Durante um número musical o som diegético (que está situado dentro do universo ficcional) se mistura com o som extra-diegético (que está situado fora do universo ficcional) já que é comum que um personagem cante para um acompanhamento instrumental que não existe no universo do filme. Quando Gene Kelly canta a icônica canção de Cantando Na Chuva (1952), não há uma banda acompanhando o personagem enquanto ele vaga pela rua, esse acompanhamento instrumental está fora do universo do filme. Esses números são também dotados de um senso de espetáculo, de grandiloquência, eles querem nos encantar, nos impressionar com as cores, coreografias e escopo dessas apresentações.

Godard não faz nada disso aqui. Na verdade, as escolhas que ele faz vão na contramão de tudo que expliquei no parágrafo anterior. A primeira coisa que fica evidente, mesmo antes de qualquer número musical é a disjunção entre a trilha musical que está situada fora do universo do filme e o som diegético. O filme faz cortes abruptos na música toda vez que precisa ressaltar um som ou diálogo que se passa dentro do universo narrativo. A ideia parece ser a de mostrar a natureza construída dessas camadas de som, denunciando, de certa forma, a artificialidade maquínica do cinema.

Isso acontece de maneira ainda mais clara nos números musicais. Nesses momentos o som extra-diegético e o diegético não aparecem juntos. Ou ouvimos o acompanhamento instrumental ou ouvimos a voz de Angela cantando, por exemplo. Isso cria um estranhamento que chama atenção justamente para como naturalizamos a quebra da realidade narrativa que normalmente é feita por números musicais. Do mesmo modo, em números como o que Angela canta e dança no cabaré em que trabalha, a câmera se mantem sempre em close no rosto dela, evitando mostrar grandes coreografias, espacialidade ou mesmo movimentos arrojados de câmera. As escolhas parecem propositais para diminuir o escopo da performance, para fazer algo propriamente “anti-espetáculo”.

A ideia de chamar atenção para os artifícios típicos dessas narrativas também é percebida nas constantes quebras da quarta parede empreendidas pelos personagens. Angela constantemente pisca e faz sinais diretamente para a câmera. Em uma cena Angela e Emile estão prestes a começarem uma discussão, mas antes de brigarem os dois se dirigem diretamente ao público anunciando o que irão fazer e se curvam para o espectador como se fossem atores em uma peça de teatro. São expedientes pensados para nos lembrar da natureza construída do cinema, que estamos diante de uma encenação feita para causar efeitos específicos na audiência.

Desta maneira, Uma Mulher é Uma Mulher é um curioso musical feito para ser um anti-musical, que diverte tanto pelas brincadeiras com o gênero quanto pelo talento da atriz Anna Karina.


Trailer

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