segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Crítica - Café com Canela

Análise Café com Canela


Review Café com Canela
Há uma cena no final da animação Ratatouille (2007) em que o personagem Anton Ego experimenta uma comida feita pela dupla de protagonistas e cada mordida imediatamente o transporta a um momento passado de sua vida. A analogia com essa cena é a melhor maneira que tenho para descrever minha experiência com este Café com Canela, um filme cheio de sentimento e delicadeza sobre a vida no Recôncavo da Bahia e sobre a superação do luto.

A trama é centrada em Margarida, uma mulher que perdeu o filho anos atrás e vive em isolamento. Em paralelo há também a história de Violeta, uma jovem que vende quitutes pela cidade e cuida de sua avó adoentada. Essas duas histórias, bem como algumas de pessoas próximas a essas duas protagonistas, vão aos poucos se cruzando.

A primeira coisa que salta aos olhos é como o filme acerta no clima da vida no Recôncavo. Com tantas produções para cinema e televisão que retratam o interior da Bahia e seus personagens com um viés de mera caricatura ou exotismo, é um alívio ver uma produção que trata esses indivíduos como seres humanos, com dores, alegrias, com vidas tão banais que parece que poderíamos simplesmente encontrar com aquelas pessoas na rua ou ouvir a respeito delas de um conhecido. Essa sensação de verdade está nos personagens, na maneira como eles falam, na música que remete aos ritmos do lugar, na beleza com a qual as paisagens são filmadas, nos sons ambientes ou no senso de comunidade que se constrói entre os personagens. O filme não permite que se veja o Recôncavo, mas que se sinta como é viver ali.

A atriz Valdinéia Soriano transmite a dor de Margarida mesmo sem precisar falar. Seu olhar é carregado de um profundo pesar e sentimento de exaustão, como se ela estivesse exaurida por sua própria dor. Esse universo interno da personagem é também transmitido pelo visual de sua própria casa, cheia de poeira, ferrugem, móveis puídos e pintura descascando, a casa é algo que se deixou se tornar ruína e como Margarida apenas aguarda seu inevitável fim. A câmera, que quase sempre traz a atriz em primeiro plano, reforça a sensação de claustrofobia e que ela é uma prisioneira (ainda que voluntariamente, de certo modo) em sua própria casa.

O som reforça a presença constante das memórias, com a personagem ouvindo diálogos do passado, evidenciando como sua mente está fixada nisso, em especial na cena em que começamos a ouvir um leve burburinho até que Margarida abre uma caixa em seu armário e o som das conversas aumenta, revelando as fotos contidas na caixa, como se o passado estivesse clamando pela atenção dela. Margarida e Violeta tem embates cheios de emoção verdadeira sobre o luto, seguir adiante e a importância de laços comunitários na superação da dor. Por sinal, o modo como o filme constrói e aborda esse sentimento de uma comunidade que se apoia constantemente é sincero e próximo do que realmente acontece em muitas cidades do interior da Bahia (digo por experiência própria).

Apesar desses temas "pesados" e da presença de personagens passando por momentos de dor e desolação, o filme não é uma experiência de mero sofrimento. Há uma leveza no modo com o qual a trama transcorre, uma impressão que você está recebendo um abraço cálido e reconfortante de uma pessoa amada e esse calor humano impede que a experiência seja algo que provoque depressão ou mal-estar. Há também um senso de humor muito natural que emerge do diálogo entre os personagens, como a anedota envolvendo um relógio ou o diálogo entre Violeta e o dono de um bar envolvendo suas coxinhas.

O filme, no entanto, tem sua parcela de problemas. O início, no qual a montagem passa rapidamente entre vários personagens parece um pouco truncado e demoramos a entender quem são cada um desses indivíduos ou qual é exatamente o seu arco. Além disso algumas cenas soam excessivas ou redundantes a exemplo do diálogo entre Violeta e Margarida sobre a natureza do cinema. É uma conversa excessivamente didática que parece querer transmitir a visão do filme sobre a experiência que ele quer construir, sendo que o filme em si já seria um excelente manifesto sobre o poder da arte em reconstruir vivências e todos os outros pontos levantados de modo pouco orgânico entre as duas.

Isso, porém, não diminui a força e a riqueza emocional de Café com Canela e a maneira sincera e afetuosa com a qual nos deixa imersos nas vidas e comunidades do Recôncavo da Bahia.


Nota: 9/10

Esse texto faz parte de nossa cobertura do XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema

Trailer

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