segunda-feira, 23 de maio de 2016

Crítica - A Garota do Livro



Certos eventos nos marcam para a vida inteira, sejam eles bons ou ruins. As ocorrências ruins deixam traumas que dificilmente cicatrizam. O cinema já trabalhou o peso de um grande trauma em filmes como Sobre Meninos e Lobos (2003) ou Ferrugem e Osso (2012). Mas e se a vítima fosse obrigada a conviver com a pessoa que lhe causou mal? E se o responsável publicasse sua história em livro que se tornaria um best-seller, obrigando a vítima a reviver constantemente todas essas situações e roubando-lhe da escolha de contar ou não sua própria história? É sobre esses questionamentos que A Garota do Livro irá tecer sua trama.

Alice (Emily VanCamp, a Sharon Carter de Capitão América: Guerra Civil) trabalha em uma editora selecionando manuscritos e sonha em se tornar escritora, mas seu chefe constantemente ignora suas opiniões. Sua situação piora quando o chefe pede que ela trabalhe no relançamento do best-seller do romancista Milan Daneker (Michael Nyqvist) e isso desperta memórias dolorosas sobre seu passado.

Apesar de Alice ter um comportamento autodestrutivo e ser constantemente controlada pelas duas figuras masculinas de autoridade com quem convive (o pai e o chefe), o filme é sóbrio e cuidadoso o bastante para jamais reduzi-la ao clichê da "mocinha sofrida". VanCamp constrói com competência a baixa autoestima e insegurança de Alice, que se porta como se estivesse sempre pisando em ovos e silenciosamente berrando por atenção. Para ela o sexo parece ser o único modo de ficar no controle e de ser notada, mesmo ela sabendo que isso pouco serve para curar suas feridas e essa consciência da inutilidade do ato a faz se detestar ainda mais. VanCamp ainda tem carisma suficiente para nos fazer torcer por ela, mesmo quando Alice se entrega a atitudes irracionalmente destrutivas.

Conforme a narrativa se desenvolve, acontecimentos do presente se alternam com flashbacks do passado que mostram como ela conheceu Milan. Através dos dois tempos vemos como ela é ignorada pelo pai, que a interrompe sempre que ela tenta falar e sequer deixa que a jovem escolha sua própria refeição em restaurantes. Carente e solitária, é fácil entender o motivo dela se mostrar tão lisonjeada com as atenções de Milan, um homem mais velho, articulado, que se dispõe a ajudá-la com sua escrita e elogia sua inteligência. Ela, no entanto, é ingênua para perceber as reais intenções do escritor, que claramente tem outros interesses além da escrita, tanto que a critica duramente a partir do momento que Alice se recusa a dar o que ele quer.

Michael Nyqvist impressiona ao trazer a desfaçatez de Milan, que vê na jovem uma presa fácil para sua manipulação e nos desperta um asco genuíno a cada toque ou frase inapropriada que dirige à jovem. O fato do filme não nos mostrar nada demais acontecendo entre eles (exceto por uma cena) e ainda nos deixar com a sensação de que ele é um predador asqueroso mostra a competência da construção do personagem. Esse incômodo é ampliado pelo modo como a diretora estreante Marya Cohn investe em  planos longos, que fazem tudo parecer interminável, e pelo fato da câmera sempre evidenciar o desconforto de Alice durante essas situações.

O cinismo de Milan ao desmerecer as acusações da garota como se fossem fantasias adolescentes (num claro exemplo de gaslighting), inclusive convencendo os pais dela a não lhe darem ouvidos, consegue despertar uma raiva que raramente a ficção consegue. O livro dele, baseado na experiência, acaba sendo uma forma quase que definitiva de silenciá-la (e perpetuar o trauma), já que rouba da jovem o controle de sua própria história.

Esse controle também é tirado dela pelo pai (que está sempre lhe dizendo o que fazer) e pelo chefe que a ignora constantemente, mas imediatamente aceita as mesmas sugestões quando vindas de um homem, o que indica que o problema talvez não seja Alice, mas a desigualdade que há no modo como a sociedade trata homens e mulheres. O mesmo olhar desigual se dá quando Alice chama a atenção do pai por suas múltiplas parceiras e ele nega suas acusações por ser um "espírito livre". No entanto, algumas cenas antes ele questiona Alice por não ter uma relação estável ou filhos, como se isso fosse um problema para ela, mas uma virtude para ele. É curioso, inclusive, que a única pessoa que a valorize profissionalmente no filme seja justamente outra mulher, a escritora Karen (Hollis Witherspoon), que lhe dá os manuscritos ao fim.

Há no filme uma questão sobre ética artística no fato de Milan se apropriar completamente das histórias e escritos de outra pessoa para compor sua própria obra, mas o filme jamais chega a tocar nisso exatamente. Em parte é compreensível, já que o peso desse tipo de questionamento se apequena quando levamos em conta a questão do abuso envolvido, por outro lado não deixa de soar como uma oportunidade desperdiçada. Principalmente pelo filme deixar tão evidente que Milan jamais conseguiu fazer outro sucesso e sua falta de traquejo nas entrevistas nos faz crer que ele não passa de um artista medíocre que jamais teria feito sucesso se não tivesse tomado a história de Alice para si.

Assim, a jornada de Alice não é apenas para tentar superar seus traumas, mas para tomar o controle de sua própria vida. O confronto com Milan consegue manter o tom sóbrio e sem exageros da narrativa, mas depois disso tudo parece ser resolver rápido demais e em um tom mais meloso (em especial o blog que ela faz para o namorado) que vai de encontro à sutileza demonstrada até então.

Mesmo com alguns pequenos problemas, A Garota do Livro é um ótimo longa de estreia para a diretora Marya Cohn e um drama bastante cuidadoso sobre trauma e abuso.


Nota: 7/10

Trailer:

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