domingo, 28 de julho de 2013

Crítica – Ferrugem e Osso

Algumas vezes a vida dá uma virada para o pior, às vezes passamos por coisas que mudam nossos rumos para sempre, contrariando todos os nossos planos e expectativas e nos deixando à deriva. É sobre esses momentos em que a vida nos derruba que Ferrugem e Osso irá tratar, mas esta não é a típica história de superação de dificuldades através do aprendizado de valiosas lições de vida. É um filme sobre como certas coisas jamais são recuperadas e certas feridas sempre permanecem abertas, mas que mesmo isso não pode nos impedir de seguir em frente.
O filme é centrado em dois personagens. Ali (Matthias Schoenearts), um professor de educação física que faz bicos de vigia e segurança, é um homem confuso, sem rumo e um pai negligente. Stephanie (Marion Cotillard) é uma adestradora de baleias de um parque aquático, uma mulher independente e confiante. Quando Stephanie perde parte das pernas em um grave acidente no trabalho, ela não tem ninguém a recorrer senão Ali e assim os dois começam a conviver em uma relação que começa puramente física e aos poucos vai se tornando algo mais.
A própria reabilitação de Stephanie após o acidente acontece por meios muito mais físicos do que emocionais, primeiramente através da natação quando Ali a carrega até o mar, depois através do sexo. A cena que sucede a primeira transa dela após o acidente demonstra bem como ela voltou a ficar em paz consigo mesma, nos mostrando a personagem de olhos fechados, fazendo a mesma coreografia que fazia no parque aquático e aos poucos a música usada na apresentação começa a tocar, como se a estivéssemos ouvindo na cabeça da personagem, nesse momento é como se o sexo a tivesse feito compreender que ela continua sendo a mesma pessoa de antes.

A transformação e a evolução gradual são muito bem ilustradas pelo filme que inicialmente registra seu apartamento como um local escuro e cheio de cortinas fechadas. A primeira vez que Ali a leva para a rua é cheia de planos na contraluz que enchem a tela com a brancura da luz solar, como se quisesse passar a sensação de ofuscação de Stephanie ao sair da escuridão do seu apartamento. Aos poucos, as cortinas de seu apartamento se abrem e a luz volta a entra. Quando ela passa a usar próteses para se locomover, começa por cobri-las com calças, mas depois passa a exibi-las sem problemas, voltando a demonstrar a mesma força e confiança de antes do acidente.
Mas, como eu disse, essa não é uma história sobre superação e sim sobre a convivência com danos irreparáveis e viver na certeza de que se perdeu algo que jamais voltará. Isso fica bastante claro quando Stephanie e Ali vão a uma boate e ela fica sentada enquanto ele dança. Nesse momento o filme investe em vários planos-detalhe de pernas femininas na pista de dança como se fosse um lembrete a Stephanie daquilo que ela perdeu, levando a personagem a abandonar seu semblante de confiança, principalmente ao ver Ali dançando junto a outra mulher.
A relação entre os dois, por sinal, se desenvolve de maneira gradual e bastante fluida, sem nunca cair em um melodrama excessivo e evitando cair nos clichês tradicionais que são esperados neste tipo de filme, adquirindo uma beleza e alma próprias sem precisar usar as convenções como muletas. Grande parte do mérito reside nos dois protagonistas, em especial a performance marcante de Cotillard com sua Stephanie firme e altiva, mas ao mesmo tempo frágil e deprimida. Do mesmo modo, Matthias Schoenearts faz de Ali um sujeito falho e emocionalmente imaturo, cuja resposta ou reação a qualquer coisa é sempre mais física e instintiva do que emocional, mas que apesar das limitações quer cuidar bem do filho e da irmã, mesmo incorrendo a meios arriscados para isso, como se envolver com lutas ilegais.
Do meio para o final, o filme parece vaguear por entre as vidas dos personagens e há a sensação de que trama não anda e que o diretor Jacques Audiard se perdeu, mas aí temos o momento em que Ali quase experimenta uma perda tão irreparável quanto a de Stephanie e o filme, então, volta a ganhar sentido. É interessante como a imagem de Ali com os punhos sangrando sobre a água congelada remete ao início do filme, com ele descansando a mão machucada em uma tigela de gelo, como se fosse um presságio do que iria acontecer. Apesar de bem amarrado, ainda fica a sensação de um desvio narrativo um pouco desnecessário.
Ferrugem e Osso é um belo e eficiente drama que nos lembra da implacabilidade da vida e como certas coisas nunca podem ser completamente consertadas, sendo necessário aprender a conviver com elas para seguir em frente.
Nota: 9/10

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