quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Crítica – Anatomia de Uma Queda

 

Análise Crítica – Anatomia de Uma Queda

Review – Anatomia de Uma Queda
Na superfície Anatomia de Uma Queda parece ser só uma trama investigativa ou de mistério que acompanha o julgamento de uma mulher cujo marido morre em uma queda suspeita e ela fica como única suspeita. Na verdade o filme está menos interessado no evento em si e mais em como um evento dessa natureza potencializa diferentes narrativas, juízos de valor e conjecturas que eventualmente ganham o valor de verdade apesar de assentadas em um lastro mais especulativo do que factual.

A trama gira em torno da escritora Sandra Voyter (Sandra Huller), uma mulher alemã que se muda da Inglaterra para a França a pedido do marido francês, Samuel (Samuel Theis). O casal vive em uma casa isolada e que no momento passa por reformas. Um dia enquanto Samuel conserta o teto da casa e Sandra estaria dormindo, ele cai do alto da casa e morre, sendo encontrado por Daniel (Milo Machado Graner), o filho cego do casal. Os respingos de sangue encontrados na cena, bem como o testemunho incerto de Daniel fazem a polícia suspeitar de Sandra, indiciando a escritora pelo suposto assassinato do marido.

Como faltam evidências materiais, como uma arma do crime, ou testemunhos diretos, já que a única outra pessoa presente seria Daniel, a acusação resolve desencavar todo o passado de Sandra e Samuel, inclusive dos conflitos na relação deles, em especial por conta de uma gravação recente de briga no celular de Samuel para tentar conjecturar um motivo e método para o assassinato.

Em geral histórias sobre investigação e julgamentos se prestam a uma celebração da racionalidade (em um sentido bem cartesiano) humana e como qualquer coisa, por mais incerta que seja, pode ser explicada pelo uso da razão, da ciência e da inteligência humana. O texto da diretora Justine Triet usa o julgamento para ponderar sobre as impossibilidades de conhecer plenamente o outro. Mesmo passando anos ao lado de alguém, existem partes da psique daquela pessoa que permanecem inacessíveis para nós. Isso fica evidente na cena em que o terapeuta de Samuel testemunha no tribunal e Sandra se sente surpresa ao ouvir dele coisas sobre Samuel que ele nunca falava com ela.

É também uma ponderação a respeito de como a realidade depende de um componente subjetivo e que das histórias que contamos a nós mesmos para nos convencer de algo. Vemos isso no modo como a acusação pega vários incidentes isolados nas vidas de Sandra e Samuel e as usa como se estivessem plenamente conectadas com a morte de Samuel e não como incidentes soltos, tirados de seu contexto original para caber na tese da promotoria. Na verdade, mais parece que acusação e defesa tentam fazer os fatos se encaixarem em suas teses sobre o que aconteceu do que construírem suas teses em cima dos fatos. O julgamento é menos uma busca pela verdade e mais um duelo de quem constrói a narrativa mais convincente. A ideia da verdade ser mais dependente de nossa crença do que dos fatos é explicitada perto do final em um diálogo entre Daniel e a oficial de justiça que cuida dele durante o julgamento, na qual ela diz ao garoto que na ausência de certeza, o que nos resta é escolher uma versão para acreditar.

Diante de uma análise tão microscópica qualquer relacionamento soaria problemático, como bem fala Sandra em dado momento do julgamento. O filme não economiza no senso de desconforto causado pelas argumentações sensacionalistas do promotor, nos fazendo sentir o peso de como é estar na mira de uma acusação e de uma imprensa que julga cada mínimo detalhe e desentendimento de sua vida.

As brigas revelam sim uma verdade sobre a dinâmica entre Sandra e o marido, mas não são toda a verdade. São uma faceta do que são, mas eles são muito mais que isso e reduzir pessoas a alguns momentos isolados pode gerar um julgamento injusto a respeito de alguém. Não que o filme defenda que Sandra é inocente. Apesar de um veredito claro ao final, a morte em si nunca é plenamente explicada e fica à interpretação do espectador se houve ou não um crime.

Parte da ambiguidade com a qual o filme nos deixa se deve também ao trabalho da atriz Sandra Huller. Huller dá a Sandra um pragmatismo frio, inclusive diante de discussões com o marido, que fazem sua personagem soar como uma mulher manipuladora ou sem empatia para quem ouvisse as gravações. Por outro lado, há uma dor muito verdadeira nela, um desespero silencioso pela morte do marido, pela situação em que ela se encontra e um temor genuíno de perder o filho ou que ele se afaste dela por conta do que ouviu sobre o julgamento. Assim, a trama e a performance da atriz dão a personagem camadas o suficiente que torna difícil que possamos extrair um julgamento definitivo a seu respeito.

Desta maneira, Anatomia de Uma Queda é uma consistente ponderação sobre como nunca conhecemos o outro plenamente e como moldamos a realidade a partir de nosso julgamento subjetivo dos fatos.

 

Nota: 9/10


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