segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Rapsódias Revisitadas – A Negação do Brasil

 

Crítica – A Negação do Brasil

Review – A Negação do Brasil
O debate sobre representatividade negra no audiovisual tem recebido bastante atenção nos últimos anos, mas no meio da arte ele já era objeto de discussão faz muito tempo. Lançado em 2000 o documentário A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, visa discutir as presenças e ausências da representação negra nas telenovelas brasileiras, mostrando como desde os anos 60 artistas negros já tentavam dar mais visibilidade a pessoas negras na teledramaturgia e a luta para isso desde então.

Recorrendo a entrevistas, imagens de arquivo e narrações feitas pelo próprio diretor o documentário argumenta que a pouca presença de negros na televisão e o tipo de representação feita dos negros nesses meios produz uma dupla negação da realidade social brasileira. De um lado a pouquíssima presença de negros em telenovelas seria uma negação da fatia que os negros ocupam da população brasileira. Por outro, as representações estereotipadas ou condescendentes que reproduziam a ideia de uma democracia racial plena negavam a pervasividade do racismo no nosso cotidiano e como isso afeta a população negra.

A narrativa inicia rememorando o sucesso da novela O Direito de Nascer na TV Tupi e como ela deu visibilidade ao trabalho da atriz Isaura Bruno, apesar dela estar restrita ao estereótipo da negra maternal. O documentário que apesar da personagem de Bruno ter feito muito sucesso na época, a atriz sofreu posteriormente com a escassez de papéis, tendo morrido pobre e esquecida.

As imagens de arquivo e narrações mostram como os raros personagens negros ou não brancos que protagonizavam novelas nessas primeiras décadas da televisão brasileira não eram interpretados por atores negros. Em A Cabana do Pai Tomás, o personagem título (que também remete a estereótipos sobre a população negra) era interpretado por Sérgio Cardoso, um ator branco usando blackface. O testemunho do ator Milton Gonçalves sobre esse processo de maquiagem e como ele exagerava os traços tipicamente negros ao ponto do grotesco e da caricatura, mostrando o racismo desse expediente para além da exclusão de oportunidade a atores negros. Ao longo do documentário ouvimos entrevistas com atores e atrizes negras como Gonçalves, Zezé Motta ou Ruth de Souza a respeito das dificuldades enfrentadas por eles ao longo de suas carreiras e o quanto lutavam para construir uma representação digna de personagens negros.

Mesmo quando as novelas mostram personagens negros bem-sucedidos, como o médico vivido por Milton Gonçalves na primeira versão de Pecado Capital, o documentário aponta como esse personagem existe em uma espécie de vácuo social e cultural, não convivendo com mais nenhuma outra pessoa negra, nem trazendo consigo nenhum elemento da cultura afro-brasileira, deixando implícito a ideia de que para serem aceitos os negros precisariam se deixar assimilar pelos brancos. Essa ideia é reforçada quando o documentário rememora a quantidade de relacionamentos entre brancos e negros construídos nas novelas ao longo de décadas com a intenção de mostrar que não há preconceito no Brasil, mas as mesmas novelas raramente mostravam relacionamentos entre duas pessoas negras, mais uma vez colocando de modo subjacente a noção de que a aceitação social do negro passava por se deixar “embranquecer”.

Nos casos em que as novelas de fato mostravam o racismo, os personagens negros eram retratados como ouvindo passivamente esses insultos, exaltando o estoicismo desses personagens em ouvir calados como se eles não se deixassem afetar por isso, encorajando essa reação ao invés do enfrentamento a atitudes racistas. Isso fica evidente no caso citado da novela Pátria Minha quando diferentes grupos do movimento negro protestaram contra uma cena em que um personagem sofria sem reação a uma série de pesadas ofensas proferidas pelo vilão interpretado por Tarcísio Meira e a Rede Globo foi obrigada a criar uma cena oferecendo um contraponto a essa postura passiva.

Chegando ao fim dos anos 90, o documentário pondera sobre alguns avanços alcançados, como novelas retratando famílias negras de classe média, embora estereótipos ainda estivessem bastante em uso e ainda houvesse um longo caminho a ser trilhado para repensar o lugar em que os negros eram representados na telenovela brasileira. Por mais que critique as limitações de certos desenvolvimentos, o documentário não deixa de vê-los como vitórias “possíveis” dentro das limitações das respectivas épocas em que ocorreram ao mesmo tempo em que aponta possibilidades de ir ainda mais longe nesses desenvolvimentos, mostrando a maneira lenta com a qual a comunicação de massa tenta se adequar às demandas do público ao mesmo tempo em que certos desenvolvimentos são rechaçados por setores mais conservadores da sociedade, como o episódio narrado por Zezé Motta de quando a Globo recebeu inúmeras correspondências racistas protestando o fato dela fazer par romântico com o então galã Marcos Paulo na novela Corpo a Corpo.

Assim, A Negação do Brasil traz uma análise consistente dos problemas da representação negra nas telenovelas brasileiras a partir de um amplo panorama histórico que revela como esses produtos midiáticos estavam longe de refletir as experiências cotidianas da população afro-brasileira.


Trailer


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