sexta-feira, 24 de março de 2023

The Dropout e o empreendedorismo como performance

 

Crítica - The Dropout

Resenha Crítica - The Dropout
Quando escrevi sobre o documentário A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício (2019) mencionei que muito da razão de Elizabeth Holmes ter prosperado por tanto tempo apesar de ser uma fraude e sua tecnologia não funcionar era porque ela se apresentava publicamente da exata maneira que o mercado financeiro esperava que a criadora de uma startup de tecnologia iria se comportar. Depois de assistir à minissérie The Dropout, que se baseia na trajetória de Holmes, devo dizer que essa impressão foi reforçada.

Ao longo de oito episódios, a série acompanha a trajetória de Holmes (Amanda Seyfried) desde sua entrada em Stanford e seu eventual abandono da faculdade para abrir sua empresa de tecnologia, passando à eventual derrocada da Theranos quando as alegações de fraude vem a público e fica comprovado que a tecnologia que ela oferecia nunca funcionou.

A série não apenas tenta entender como Elizabeth conseguiu passar mais de dez anos acumulando capital e grandes contratos, como também busca alguma compreensão do que impelia a personagem. Nesse sentido, o material faz um retrato humanizado de Holmes, entendendo que ela possivelmente começou com boas intenções e com o desejo genuíno de fazer a diferença. A série, porém, não alivia ao mostrar que a despeito das intenções Holmes agiu de maneira antiética, inconsequente e criminosa ao vender um dispositivo médico que não funcionava, colocando a saúde de pessoas em risco.

Os primeiros episódios mostram como Elizabeth cresceu fascinada com os discursos mitificados da figura de grandes inventores tipo Thomas Edison ou Steve Jobs. Imersa em discursos de platitudes genéricas sobre ter uma ideia e trabalhar duro para fazer essa ideia acontecer, Elizabeth crê verdadeiramente que basta criatividade para inventar algo, ignorando a gama de conhecimentos técnicos e científicos necessários.

Já no primeiro episódio, quando a protagonista ainda está em seu segundo ano de faculdade, uma professora avisa Elizabeth que o invento dela não tem como funcionar e seria de difícil execução prática mesmo que funcionasse. Ao invés de aceitar a crítica construtiva e embasada, Elizabeth vê a professora como alguém que quer impedir seu sucesso e larga a faculdade para abrir uma empresa cuja tecnologia ela não tem nenhum conhecimento ou formação. A série, porém, aponta que o fato de Elizabeth ter sido estuprada no campus da faculdade e seu estuprador ter ficado impune também foi um fator para sua saída, evitando construir um relato unidimensional da biografada e entendendo que esse tipo de mudança de rumo passa por várias determinações e raramente é fruto de apenas um fator.

Se de início Elizabeth se comporta como a jovem CEO descolada, emulando a conduta de outros jovens bilionários do Vale do Silício, conforme ela percebe que seus dispositivos não funcionam e não estão perto de funcionar, ela vai montando toda uma performance mais rígida de seriedade para tentar levar a mentira adiante na esperança que em algum momento seu aparato (que, de novo, ela não entende a ciência que o guia) irá funcionar.

A partir daí ela cria a imagem da Elizabeth que se tornou pública, das roupas pretas de gola alta que emulam Steve Jobs, da voz forçadamente grave similar a Mark Zuckerberg, do olhar fixo no interlocutor sem piscar, dos discursos para funcionários e acionistas cheios de platitudes vazias sobre o mundo dos negócios e que soam como a retórica de seitas. É curioso, inclusive, que dentro dessa performance de grande empreendedora elementos que seriam suspeitos em qualquer circunstância normal são, aos olhos de investidores, uma reiteração de que estão diante de uma grande empresa.

O fato dela ser evasiva e não conseguir fornecer respostas básicas sobre a ciência de seu aparato é vista como uma tentativa de proteger sua propriedade intelectual. Não permitir que possíveis parceiros de negócios observem seus laboratórios, mesmo sob restritos acordos de confidencialidade, não soa suspeito, mas uma prova de que ela tem tecnologia valiosa. Pressionar empresas a comprarem seu produto sem saber o que ele faz ou como pode ser confiável usando técnicas de venda sob pressão não é um indicativo de que ela pode estar vendando gato por lebre, mas de que ela está muito à frente do desenvolvimento tecnológico e que não aderir à sua tecnologia ficar para trás.

O motivo de acreditarem em tudo isso é justamente por conta da performance que ela monta para esses gestores e capitalistas de risco. Elizabeth é um clichê ambulante de frases de efeito clichê sobre inovação e empreendedorismo, nunca tem nada consistente a dizer e é incapaz de falar sobre a ciência que em tese ela deveria dominar e o mercado financeiro come com farinha essa performance. Desta maneira a série revela como o mundo da tecnologia e do financiamento às startups do Vale do Silício se importa muito pouco com ciência e desenvolvimento e sim com a possibilidade de lucrar, com o fato de algo ter a aparência de ser lucrativo e inovador.

É um universo em que a embalagem importa mais do que o produto e Elizabeth soube embalar bem a si mesma e sua empresa para preencher todos os requisitos de uma aparência de inovação para um público de tecnófilos que não são pesquisadores ou cientistas. Nesse sentido, a série também poderá sobre como pautas sociais importantes foram cooptadas e usadas inescrupulosamente por Holmes, como o feminismo. Qualquer crítica à sua empresa ou sua tecnologia nunca era respondida com respostas técnicas, sempre com ataques pessoais aos críticos e constantemente usando do machismo estrutural de nossa sociedade para dizer que ela só estava sendo criticada por ser mulher. Um uso espúrio de uma pauta legítima que, como mostra a série, só cria mais empecilhos para mulheres empresárias que tentam trabalhar honestamente.

A performance de Elizabeth desmorona quando as acusações de fraude se tornam públicas e o entorno dela espera que ela se comporte nesse momento de crise como a empresária genial que imaginaram que Holmes era. O que acontece, no entanto, é uma entrevista desastrosa na qual Elizabeth se mostra incapaz de discutir a situação sob quaisquer outros termos além de frases feitas inócuas sobre estar devastada com a situação, falhando em defender seu produto ou anunciar qualquer medida de separação. Não é por acaso que depois da entrevista ela entre no camarim e imediatamente remova a maquiagem e as roupas que estava usando, desmontando a personagem que criou para si agora que não a serve mais.

A atriz Amanda Seyfried, por sinal, é ótima em evidenciar como a persona pública de Elizabeth é uma encenação, com Holmes retornando às suas falas e maneirismos normais sempre que está sozinha ou com pessoas de sua intimidade, como Sunny (Naveen Andrews), namorado de Elizabeth que ela traz para a empresa quando vê que a tecnologia não vai funcionar. O modo como ela descarta Sunny ao final (embora Sunny também a tenha usado) e tenta fazer dele um bode expiatório por todos os problemas da Theranos mostra como Elizabeth realmente acreditava na personagem que criou para si e se via como essa gênia infalível cujo fracasso da empresa só podia ser culpa de outra pessoa. O desfecho inclusive aponta para questões de raça e classe no modo como o judiciário lida com Sunny e Elizabeth, enquanto ele (um imigrante paquistanês) é condenado e preso, Elizabeth (uma mulher branca de classe alta) não vê um dia de cadeia e segue em liberdade para reconstruir sua vida.

O episódio final serve ainda como um lembrete para a importância dos órgãos de regulação governamentais e para a estabilidade do trabalho do servidor público. Afinal, mesmo depois das denúncias públicas de grandes reportagens a Theranos não tinha perdido um acionista sequer e só quando um órgão regulador entra para investigar é que punições começam a acontecer. A cena em que Elizabeth e seus advogados tentam esquivar e intimidar o servidor do órgão de saúde que vai à sede da Theranos para fiscalizar os laboratórios mostra só mesmo um agente do Estado, com toda a força da legislação e estabilidade do cargo que ocupa, poderia bater de frente com o poder financeiro e assédio jurídico de uma empresa com o capital e os acionistas que a Theranos tinha. É a supervisão governamental bem executada e por servidores sérios que impediu a empresa de continuar operando e causando dano à saúde das pessoas.

Pode parecer uma conclusão óbvia para nós brasileiros. No entanto, contexto estadunidense em que muitos setores da economia tem pouquíssima regulação estatal e o governo permite que as empresas se “autorregulem” (normalmente com resultados desastrosos, vide os eventos recentes envolvendo o Silicon Valley Bank) a ideia de que o Estado precisa olhar mais de perto a maneira como essas startups operam é algo que vai diretamente às noções radicais de livre mercado que fazem parte do discurso comum no país.

Como eu já tinha um relativo conhecimento sobre o caso da Theranos e já tinha assistido outras produções sobre o tema, confesso que não esperava muita coisa de The Dropout, mas fiquei positivamente surpreso com a análise complexa que a minissérie faz tanto do caso quanto da trajetória de Elizabeth Holmes.

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