quarta-feira, 15 de março de 2023

Feud e o mito da rivalidade feminina

 

Feud e o mito da rivalidade feminina

Esse texto deveria ter sido publicado no oito de março, Dia Internacional da Mulher, em que eu comentaria a série Feud: Bette and Joan para sobre as mulheres em Hollywood e o tratamento que a indústria dava a elas. Infelizmente não consegui ter esse material pronto a tempo, mas Feud é uma série tão boa (que infelizmente só assisti agora) que não queria deixar as ideias que a série me deu passarem batido.

Assim como American Horror Story e American Crime Story, Feud é uma série de antologia, com cada temporada contando uma história diferente, nesse caso de alguma rivalidade que marcou época. A primeira temporada conta a história da rivalidade entre Joan Crawford (Jessica Lange) e Bette Davis (Susan Sarandon), mostrando a tensão explosiva entre as duas durante as gravações de O Que Terá Acontecido Com Baby Jane? (1962).

Naquele ponto em suas carreiras, tanto Crawford quanto Davis já haviam tido rusgas, disputando os mesmos papéis e espaços na indústria do cinema, mas a disputa entre elas apenas intensifica durante Baby Jane. De início parece remontar a clichês machistas de que mulheres são incapazes de cooperar e sempre atacam umas as outras, mas aos poucos a trama desvela como essa rivalidade não emergiu das duas, mas foi fomentada por todo um sistema controlado por homens para evitar que qualquer uma das duas (ou qualquer mulher, na verdade) ganhasse muito poder.

Em uma cena entre o diretor Robert Aldrich (Alfred Molina) e o executivo Jack Warner (Stanley Tucci), Warner menciona como fomentar a rivalidade entre as duas manteve ambas dispostas a aceitar qualquer papel sob qualquer salário pelo medo de ser ofuscada pela outra. Mais que isso, Warner sugere que Aldrich comece a espalhar na mídia informações sobre as brigas das duas (quer sejam verdadeiras ou não) para que isso ajude a divulgar Baby Jane e também para evitar que as duas se unam contra ele e acabem tendo um poder de barganha muito grande no set. Aldrich imediatamente acata a sugestão de Warner e entra em contato com colunistas de fofoca contando histórias mentirosas de comentários maldosos que Bette fazia sobre Joan, jogando fogo na relação das atrizes.

O fomento a rivalidades femininas é mostrado, portanto, como um instrumento de uma sociedade cujos espaços de poder são dominados por homens é pensado exatamente para evitar que as mulheres adquiram poder para desafiar o patriarcado. Na verdade, ao mantê-las ocupadas brigando entre si, o patriarcado faz as mulheres pensarem que seus problemas residem em outras mulheres, ignorando os dispositivos de poder masculino colocados para impedir seu progresso.

Além disso a série comenta como em Hollywood (e na sociedade da época como um todo) o valor das mulheres está atrelado à beleza e à juventude. Apesar atrizes talentosas e vencedoras de Oscar, Bette e Joan se encontram no ocaso de suas respectivas carreiras. Não por conta de fracassos de bilheteria ou queda de sua capacidade de atuar, mas porque a indústria simplesmente não oferece papéis de protagonista para mulheres da idade delas. Isso é um problema até hoje em Hollywood, quando depois de certa idade mulheres passam a ser escaladas apenas para ser a mãe, a tia ou a amiga da protagonista. Apesar do talento Bette e Joan são descartadas simplesmente por conta da idade.

O sucesso de Baby Jane, por sua vez cria uma nova onda de oportunidades para elas e atrizes mais velhas, mas sempre no mesmo tipo de papel. Em um ciclo de filmes conhecidos como hagsploitation Hollywood produziu várias narrativas de suspense e terror que tinham mulheres mais velhas como vilãs como Com Maldade na Alma (1964), Obsessão Sinistra (1971) ou Fábula Macabra (1972). Essas personagens eram sempre marcadas pela feiura física, personalidade amargurada, solitária e instável, normalmente com inveja do sucesso e da atenção de mulheres mais jovens. Além de fomentar a falácia machista de que mulheres naturalmente se detestam, esse tipo de filme mostrava como mulheres, especialmente as de certa idade, são malucas, instáveis e uma ameaça constante. Basicamente eram obras que forneciam uma série de motivos para justificar o desprezo da sociedade por mulheres mais velhas.

Feud, porém, evita retratos unidimensionais de suas duas protagonistas, entendendo que ambas eram figuras complexas, com seus egos e traumas que muitas vezes às levavam a atos de autossabotagem e a queimar pontes com amigos e familiares, incluindo as relações complicadas que as duas tinham com as respectivas filhas. Nesse sentido, a narrativa usa as personalidades geniosas de Bette e Joan para mostrar como elas eram mais parecidas do que se davam créditos, duas pessoas que poderiam ter sido amigas e que talvez pudessem ter mudado as coisas para mulheres em Hollywood se a aproximação entre elas não tivesse sido constantemente sabotada por homens em posições de poder. O episódio final é carregado de melancolia conforme acompanha os anos de decadência das duas atrizes conforme a saúde e a carreira delas se degrada e ambas se tornam cada vez mais isoladas da indústria.

Uma das últimas cenas comenta sobre o modo como a indústria é uma máquina de moer gente e descarta facilmente as pessoas. Depois da morte de Joan, Bette e duas outras atrizes assistem o Oscar e veem o rosto de Crawford aparecer brevemente na montagem do In Memoriam. As amigas de Bette se escandalizam que alguém com a trajetória de Joan apareceu por apenas dois segundos. “Dois segundos é tudo que qualquer uma de nós vai ter” retruca Bette de maneira seca, entendendo perfeitamente que elas são objetos descartáveis. Assim, série encerra nos lembrando da importância de preservar a memória, de respeitar a trajetória dos mais velhos e de entender que algumas trajetórias não encontram um fim amargo por azar ou acaso, mas por conta de um sistema feito para subjugar e descartar mulheres.

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