quinta-feira, 16 de julho de 2020

Rapsódias Revisitadas – Sonata de Outono


Análise Crítica – Sonata de Outono

Review – Sonata de OutonoO cineasta Ingmar Bergman costuma investigar os medos, anseios e neuroses presentes na mente e na existência humana, como o relação com a morte em O Sétimo Selo (1957) ou a recuperação de traumas e identidade em Persona (1966). Neste Sonata de Outono Bergman mira seu olhar para as relações entre pais e filhos, na maneira como isso nos define, nos marca e, de certa forma, nos traumatiza.

Na trama, a pacata Ava (Liv Ullman) recebe a mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), uma reconhecida pianista internacional, em sua casa. Ava anseia pelo afeto e aprovação da mãe, mas Charlotte continua a tratá-la com frieza e distanciamento. Aos poucos as tensões entre as duas vão crescendo até inevitavelmente explodirem.

O confronto é construído de maneira bem cuidadosa e inicialmente sutil. Quando Charlotte chega à casa de Ava o diálogo entre as duas parece ameno e cordial, mas o texto e a interpretação de Ullman e Bergman deixa algumas pistas dos problemas na relação de ambas. Um exemplo é quando Ava menciona para a mãe que Helena (Lena Nyman), sua irmã caçula e com problemas de saúde, está morando com ela. A surpresa de Charlotte soa estranha, afinal que mãe ficaria anos sem saber do paradeiro da filha deficiente? Além disso, mais que surpresa, Charlotte demonstra incômodo com a presença de Helena.

A oposição entre as duas também é explicitada desde o início através das escolhas de figurino das personagens, um elemento evidenciado principalmente na cena do jantar. Charlotte com o que parece ser um longo vestido de festa se mostra uma mulher de requinte, vaidosa, que gosta de estar bem arrumada, segura de si e da aparência. Já Ava veste as mesmas roupas de sempre, blusas e saias simples, muito largas, que a fazem parecer uma camponesa desengonçada e insegura. Essa oposição é importante, pois quando o conflito entre as duas explodir descobriremos como muito da postura mansa e insegura de Ava vem da relação complicada com a mãe.

O momento em que fica explícito que o conflito entre as duas é inevitável é a cena do piano, quando Charlotte critica o modo como Ava toca uma peça Chopin e senta ao piano para mostrar a filha a melhor maneira. A conduta de Charlotte, no entanto, não é a de alguém preocupada em ensinar, mas de demonstrar superioridade. Há um gesto muito pequeno de Charlotte (e o filme nem chama muita atenção para ele, mas que diz muito sobre a postura dela naquele momento), que é o instante em que ela baixa a partitura da música. Ao fazer isso ela comunica o quanto Ava está distante de seu nível, demonstra sua superioridade como pianista e esfrega na cara da filha que ela é um fracasso.

Quando a discussão entre as duas explode durante a madrugada, o que era uma disputa velada, sutil, se transforma em um duro embate verbal na qual ambas expõem suas frustrações, raiva e inseguranças. A condução de Bergman evidencia o trabalho das atrizes em planos longos, com pouco movimento de câmera, deixando que suas duas protagonistas conduzam o conflito e mobilizem nossas emoções. A crueza com a qual ambas expõem os sentimentos e as marcas que o distanciamento afetivo deixou em cada uma chega a ser difícil de assistir dada a veracidade intensa que as duas protagonistas passam, como se estivéssemos assistindo uma discussão real entre mãe e filha, invadindo uma intimidade que não deveríamos ter acesso. O texto resiste a reduzir a disputa a um embate maniqueísta, evitando vilanizar alguma das protagonistas.

Sonata de Outono é, portanto, um exame intenso sobre as agruras das relações familiares e as indeléveis marcas que elas deixam em cada um.

Trailer

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