quinta-feira, 2 de julho de 2020

Crítica – Pequenos Incêndios Por Toda Parte


Análise Crítica – Pequenos Incêndios Por Toda Parte

Review – Pequenos Incêndios Por Toda Parte
Em seu primeiro episódio, a minissérie Pequenos Incêndios Por Toda Parte, adaptação do romance de mesmo nome de Celeste Ng, parece ser mais uma daquelas narrativas do “salvador branco”, aquela em que uma pessoa branca privilegiada ajuda uma pessoa negra que aparentemente é incapaz de ajudar a si mesma juntas as duas aprendem valiosas lições uma com a outra. A indústria hollywoodiana adora esse tipo de história, muitas vezes premiando esses filmes que colocam pessoas negras como figuras passivas que precisam de um branco para lutarem pelo que querem, já vimos isso em Um Sonho Possível (2009) ou em Green Book (2019) e essa minissérie parecia ser mais um exemplar desse clichê anacrônico. O texto a seguir contem SPOILERS para a série.

Digo “parecia” porque, na verdade, ela é qualquer coisa menos isso. A trama usa esse premissa batida para virá-la ao avesso, para mostrar que a “salvadora branca” não é a heroína da história, mas a vilã. Que esse tropos não é progressista, mas uma força de manutenção do status quo, feito para que tudo continue igual, expiando a culpa de uma elite branca pelas desigualdades, mas sem promover uma transformação real, mantendo as minorias no lugar que as elites reservaram a elas.

Na trama, Elena (Reese Witherspoon) é uma mãe de família e repórter de uma pequena cidade no interior dos Estados Unidos. Elena conhece Mia (Kerry Washington), uma mãe solteira que vive com a filha no próprio carro, e oferece a Mia não só um imóvel que tem para alugar como também emprega Mia como sua governanta.

Os signos da “salvadora branca” são exibidos desde o início, com o primeiro instinto de Elena ao ver Mia dormindo dentro do carro num estacionamento sendo o de chamar a polícia. Apenas quando vê que Mia tem uma filha que Elena se compadece e decide ajudá-la, deixando evidente que a motivação da jornalista é expiar a própria culpa, negar a ação preconceituosa que teve e provar para si mesma e para Mia que é uma boa pessoa.

O que parecia ser uma trama bem lugar comum vai aos poucos ganhando complexidade conforme conhecemos mais sobre as duas protagonistas e também sobre suas famílias. Se inicialmente Elena parece a epítome do “sonho americano”, uma mulher que tem uma carreira bem sucedida e uma família em aparente harmonia, aos poucos vemos os problemas da relação dela com os filhos e que Elena, na verdade, é uma mulher medíocre e frustrada, cujas conquistas (poucas) se deveram justamente a privilégios de cor e classe social.

A trama, no entanto, reconhece que parte dos problemas de Elena vem de simplesmente tentar se adequar ao seu “papel social” e cumprir o que a sociedade espera dela enquanto mulher. Que ela se deixou levar pelo que os outros esperavam dela por achar que não tinha outra opção. Por outro lado, Mia é alguém que tentou ir de encontro a esses papeis sociais que a sociedade lhe reservava e enfrentou dificuldades justamente por conta da etnia e classe social. Mia, porém, também não é tratada como santa, demonstrando também que teve certas atitudes questionáveis ou movidas por orgulho.

É justamente essa complexidade que torna a série tão interessante, já que o texto reconhece os problemas e falhas de suas personagens sem minimizá-las, construindo uma discussão sobre raça, classe e gênero que reconhece as nuances e interseccionalidade dessas questões de identidade. Um exemplo é a cena em que Brian (Stevonte Hart) termina o namoro com Lexie (Jade Pettyjohn) dizendo que ela enxerga todos os aspectos da identidade dele menos o fato dele ser negro, chamando a atenção por certas condutas preconceituosas dele. Brian, porém, se nega a ouvir quando Lexie fala das dificuldades e segredos que teve que guardar nos últimos dias (ela engravidou dele e secretamente fez um aborto) porque ele apenas a vê como uma pessoa branca e privilegiada, não a vendo como uma mulher, deixando de reconhecer as desigualdades entre homens e mulheres, enxergando apenas a questão racial.

Temas como homofobia, apropriação cultural e racismo permeiam a narrativa e o texto tem o cuidado de não dar respostas prontas sobre essas questões, apontando as estruturas sociais e de poder que atuam para permitir que as desigualdades existam e perdurem. A relação entre Lexie e Pearl (Lexi Underwood), a filha de Mia, mostra como Lexie se apropria constantemente da amiga negra, “roubando” a história de discriminação de Pearl no ensaio que escreve para entrar na faculdade ou usando o nome de Pearl quando vai fazer um aborto.

A escolha de usar o nome da amiga diz muito sobre o que Lexie pensa do lugar social de cada uma. Ela, Lexie, uma menina branca de classe alta, não pode manchar a reputação sendo vista em uma clínica de aborto, mas Pearl, uma menina negra que vive com a mãe solteira e nunca conheceu o pai, não precisa se preocupar com a reputação porque isso estar em uma clínica de aborto seria o “esperado” para alguém como Pearl.

Além dos temas, as atuações são o que dá força à série. Reese consegue trazer a doçura inicial de Elena ao mesmo tempo que dá indícios que ela talvez não seja tão boazinha quanto pensamos. Conforme a trama progride, a atriz nos permite ver que a personagem é alguém que vive em constante negação, negação de que ela não queria a vida que tem, negação do sentido de frustração e infelicidade ou negação de que talvez não seja uma pessoa tão boa quanto pensa ser.

Essa recusa de Elena em assumir que não é a “cidadã de bem” que pensa ser é um dos motores que guia sua busca para descobrir o passado de Mia. Na cabeça da personagem provar as falhas de Mia implica em justificar a retidão de suas próprias escolhas, afinal se Mia está errada, tudo que Elena fizer contra ela estaria certo. Um equívoco que a personagem só vai perceber tarde demais.

Já Kerry Washington faz de Mia uma mulher assertiva, cujas dificuldades da vida a ensinaram a necessidade de se impor e não deixar situações de exploração e preconceito passarem batidas. Ela também apresenta uma postura defensiva que denota que a personagem esconde um segredo muito sério e que o fato de não poder falar abertamente sobre isso claramente a causa muita dor a ela. Além das duas protagonistas, o resto do elenco também é competente, com destaque para os jovens atores que interpretam os filhos de Elena e Mia.

Pequenos Incêndios Por Toda Parte consegue pegar lugares-comuns da ficção e os vira ao avesso para narrar uma complexa trama sobre classe, etnia e gênero.


Nota: 9/10

Trailer

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