sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Crítica – Retrato de uma Jovem em Chamas


Análise Crítica – Retrato de uma Jovem em Chamas


Review – Retrato de uma Jovem em Chamas
É impressionante como Retrato de uma Jovem em Chamas consegue fazer muito usando tão pouco de elementos, com um número reduzido de cenários e apenas quatro atrizes durante a grande maioria de sua minutagem. Esses elementos são mobilizados para criar uma contemplativa reflexão sobre afeto e arte, a fugacidade da vida e a perenidade da expressão artística.

A narrativa se passa no fim do século XVIII. A pintora Marianne (Noemie Merlant) viaja a uma isolada ilha após ser contratada por uma Condessa (Valeria Golino) para pintar um retrato de Heloise (Adele Haenel), filha da nobre. Heloise está de casamento marcado com o rico italiano e o retrato é para ser mandado para o noivo para que ele saiba como é Heloise. Como Heloise se recusa a aceitar o casamento e a posar para um quadro, a Condessa pede que Marienne finja ser uma dama de companhia de Heloise para observá-la e pintá-la sem que ela saiba.

Usando pouquíssima música e deixando longos trechos de silêncio, a diretora Celine Sciamma foca nos olhares de suas personagens e nas imagens que esses olhares criam. Como Marianne fala em uma determinada cena, a pintura deriva do olhar, do exame cuidadoso das feições e maneirismos de uma pessoa para entender como ela se move, como se expressa.

A direção de Sciamma permite que façamos exatamente isso, que observemos essas personagens para perceber o que elas conseguem dizer apenas com o corpo e com o olhar. Assim, mesmo sem nenhum diálogo que diga isso de maneira explícita, vemos a evolução do sentimento entre as duas pela crescente ternura no olhar de Marianne, pela curiosidade no semblante de Heloise que se mostra encantada pela quantidade de coisas que Marianne tem a lhe ensinar. As cores intensas do figurino (vermelho para Marianne e verde para Heloise) é também uma maneira de mostrar a intensidade que essas personagens não verbalizam.

Além de ponderar sobre a força do olhar, a narrativa também discute a sobrevivência das imagens artísticas. Em uma cena, Marianne, Heloise e a criada Sophie (Luana Bajrami) discutem o mito grego de Orfeu. Sophie defende que Orfeu foi estúpido em se virar para ver Eurídice, perdendo-a para sempre, mas Marianne e Heloise defendem como uma escolha artística. Orfeu já a tinha perdido e inevitavelmente a perderia de novo, então ele preferiu preservar a imagem que tinha dela e viver com isso para sempre.

O mito grego reverbera durante o percurso da relação entre Marianne e Heloise, afinal as duas sabem que aquele sentimento é fugaz, que Marianne terá de terminar o quadro e Heloise será obrigada a casar. Dessa forma, pintar Heloise não é apenas um meio de guardar a imagem dela, mas o sentimento experimentado pelas duas. A pintura é um meio de revisitar para sempre esse sentimento e é aí, segundo o filme, em que residiria a força da arte, no poder de preservar um sentimento no tempo e ser capaz de transmitir a força e a verdade do sentimento para qualquer apreciador da obra artística.

A arte e o sentimento contido nela podem ter uma sobrevivência e um alcance maior do que a própria vida humana, permitindo as pessoas que se conectem com diferentes olhares de mundo, diferentes sentimentos. É uma cápsula do tempo da vivência humana no mundo e Retrato de uma Jovem em Chamas defende com muita sutileza e afeto o poder de permanência da arte.

Nota: 9/10


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