quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Crítica – Atlantique


Análise Crítica – Atlantique


Review – Atlantique
O cinema já produziu inúmeros filmes sobre a questão de imigrantes africanos tentando chegar à Europa de barco em condições precárias. São filmes normalmente voltados para o perigo da jornada, a dificuldade de se adaptar ao novo país e normalmente são feitos pelos mesmos países europeus que recebem esses migrantes, contando essas histórias sob o ponto de vista europeu. Este Atlantique, dirigido pela senegalesa Mati Diop, segue na contramão dessas tendências, tecendo sua trama do ponto de vista africano e do ponto de vista não dos que viajam, mas dos que ficam.

O filme se passa em Dacar, capital do Senegal, e conta a história de Souleiman (Traore) um trabalhador de construção civil que, depois de meses sem receber, deixa o emprego na construção de um grande arranha-céu para tentar ir para a Europa de barco com outros colegas de trabalho. Souleiman está romanticamente envolvido e apaixonado por Ada (Mame Bineta Sane), que, por sua vez, está prometida ao rico Omar (Babacar Sylla) por conta de um casamento arranjado pelos pais dela. Um tempo depois da partida de Souleiman e os outros trabalhadores, eventos estranhos começam a acontecer na cidade.

Na superfície parece uma história típica de amor proibido, mas o filme vai aos poucos se colocando no reino do realismo fantástico. Atlantique é, na prática, uma história de fantasmas, mas não uma história de terror. É uma história sobre como aqueles que se vão permanecem conosco e fazem parte de nossas vidas mesmo estando ausentes. São menos uma assombração e mais um lembrete do que está faltando na vida dos que ficaram, não só em termos da presença dessas pessoas que partiram, mas da falta de respostas quanto ao que aconteceu com elas.

A ideia de que esses fantasmas muitas vezes precisam “possuir” os que ficaram para poderem se comunicar remete a noção de que cabe aos que ficaram dar voz esses ausentes, falar pelos que não podem ou não conseguem, fazê-los serem ouvidos inclusive para o que aconteceu com eles não aconteça com outros.

Essa sensação de vazio, tédio e alienação é muito bem construído ao longo do filme, com suas tomadas do sol causticante criando uma atmosfera opressiva para a cidade de Dacar. As imagens da imensidão do mar servem como um lembrete do vazio deixado pelos que partiram, assim como as imagens do bar vazio que Ada e suas amigas frequentavam com Souleiman e os demais trabalhadores.

Além de falar sobre os problemas dos migrantes, a trama também se debruça sobre algumas questões sociais do Senegal, principalmente em relação à estrutura patriarcal conservadora que existe ao redor de Ada. A personagem tem a vida controlada por homens, seja o pai, que até a submete a um exame médico para comprovar a família de Omar que ela é virgem, ao próprio Omar que a trata como propriedade apenas por serem noivos. Enquanto as amigas de Ada parecem resignadas a essa existência de que a vida delas irá se resumir a arrumar um marido, mesmo via casamento arranjado, Ada demonstra querer algo mais, seja a busca por um relacionamento baseado em um afeto real, se mantendo apegada a imagem de Souleiman, seja descobrir algo mais em si.

Ao final nem todas as subtramas se amarram com clareza, mas isso ajuda a transmitir o senso de incompletude e vazio que o filme tenta construir em relação às marcas e feridas deixadas pela ausência dos migrantes que nunca vão cicatrizar por completo. A direção de Diop mantém uma aura de mistério e estranheza ao longo da projeção, constantemente recorrendo a planos contemplativos (como as já citadas imagens do sol ou do mar) para deixar o espectador imerso na subjetividade das personagens, para que vejamos e sintamos o mundo sob o olhar dessas pessoas e é nisso que reside a força do filme, mesmo que a narrativa não consiga resolver todos os arcos que apresenta.

No fim das contas, Atlantique é um conto sensível sobre supressão e emancipação de vozes, sobre a criação e preenchimentos de vazios, sobre os oceanos (reais ou metafóricos) que nos separam daquilo que desejamos.

Nota: 8/10


Trailer

Nenhum comentário: