quarta-feira, 1 de maio de 2019

Rapsódias Revisitadas – Carnaval Atlântida


Crítica - Carnaval Atlântida


Review Carnaval AtlântidaAs chamadas “chanchadas” eram filmes de comédia de cunho popular feitas no Brasil dos anos 30 aos anos 50 aproximadamente. Durante um bom tempo foram consideradas um gênero “maldito” ou “inferior”, parte disso vinha do discurso de cineastas do movimento do Cinema Novo que viam as chanchadas como algo raso, alienante e vazio. Eles não estavam completamente errados, já que muita coisa, principalmente no final dos anos 50, de fato não tinha muito a oferecer ao espectador além de fórmulas manjadas.

Essas críticas, no entanto, impediram por muito tempo que se percebesse o potencial expressivo de muitas das primeiras chanchadas e de filmes comandados por realizadores como Watson Macedo, Carlos Manga ou José Carlos Burle. Um dos filmes que melhor resume as qualidades dessas chanchadas talvez seja Carnaval Atlântida, lançado em 1952 e dirigido por Burle. Na época, a Atlântida, junto com a Cinédia, era uma das maiores produtoras de cinema no Brasil daquele período. A trajetória da produtora chegou a ser retratada no documentário Assim Era a Atlântida (1974), que ajuda a entender esse período importante e pouco pesquisado do cinema brasileiro.

A trama de Carnaval Atlântida é centrada na produtora comandada por Cecílio B. DeMilho (Renato Restier), uma nome feito claramente para parodiar o produtor e diretor hollywoodiano Cecil B. DeMille. DeMilho quer que seu próximo filme seja uma superprodução baseada na história de Helena de Tróia e contrata um especialista em história grega, o professor Xenofontes (Oscarito) para ajudar na tarefa. Ao mesmo tempo, os atores do estúdio, como Augusto (Cyll Farney), Regina (Eliana Macedo) e os dois assistentes Piro (Colé Santana) e Miro (Grande Otelo) tentam convencer Cecílio a fazer uma comédia carnavalesca.

Tal como muitos musicais, incluindo os hollywoodianos, há aqui um conflito entre uma cultura mais elitizada e uma cultura popular. Em Carnaval Atlântida, no entanto, há também um certo elemento de nacionalismo nesse embate. A “alta” cultura, a cultura que DeMilho valoriza, é a cultura europeia e estrangeira. Assim, a elite cultural brasileira é vista como uma elite colonizada e com síndrome de vira-lata, subserviente a ideais estrangeiros e modelos artísticos estrangeiros (como o modelo cinematográfico hollywoodiano), mas que despreza tudo que é tipicamente brasileiro, em especial manifestações que derivam de espaços periféricos como era o samba naquele momento.

Nesse sentido a ideia de carnaval vem para servir não apenas um propósito literal, do carnaval brasileiro como o conhecemos, mas a ideia de carnaval como uma subversão ou inversão da ordem natural (e já vimos que essa ordem é eurocêntrica e colonizada). Nesse sentido, para o filme (e muitas chanchadas do período) a valorização de manifestações culturais como o samba, o carnaval ou o forró (como acontece em outras chanchadas) é um ato de resistência. O uso dessa cultura popular é uma tentativa de construir uma identidade nacional própria, sem precisar ficar recorrendo a matrizes culturais ou identitárias de países colonizadores.

Claro, eventualmente coisas como carnaval e samba acabaram sendo reduzidos a estereótipos preconceituosos, mas nesse momento e em décadas anteriores, era uma maneira de resistir a influências externas e tentar encontrar o que é tipicamente nosso. É curioso que o Cinema Novo, tão crítico das chanchadas, também tinha como ideia realizar um esforço “descolonizador” e pensar a identidade nacional, ainda que com outro viés. Se o Cinema Novo o fazia por uma abordagem mais crítica, política e estética (vide da noção de “estética da fome” de Glauber Rocha), as chanchadas faziam isso através da comédia (um gênero que historicamente sempre foi considerado “inferior”) e do deboche, expondo ao ridículo o viralatismo da elite cultural brasileira, tanto na figura de DeMilho quanto no professor Xenofonte, mostrando que olhamos demais para fora e pouco para nós mesmos.

É a comédia e os personagens cômicos que guiam a história. Por mais que exista uma trama romântica entre Augusto e Regina ou a tentativa dos dois de mudar a cabeça de DeMilho e Xenofonte quanto ao filme, é a dupla cômica que resolve todos esses arcos. São os dois assistentes de produção vividos por Grande Otelo e Colé Santana que fazem Xenofonte mudar de ideia, entre outras coisas na divertida cena da sauna. Também são eles que resolvem a trama romântica ao desmascarar o vilão, o Conde Verdura (José Lewgoy, que constantemente vivia os vilões das chanchadas), como uma fraude, abrindo caminho para o enlace entre Augusto e Regina.

Desta maneira, Carnaval Atlântida é um ótimo exemplo de como as chanchadas usavam a comédia e o deboche para expressar questões relacionadas à identidade nacional e ao viralatismo do brasileiro.

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