sábado, 1 de fevereiro de 2014

Crítica – Trapaça


Resenha Trapaça


Review TrapaçaO diretor David O. Russel tem um talento para pegar premissas que poderiam facilmente reder filmes demasiadamente formulaicos, previsíveis e clichês e transformá-las em produtos acima da média, falei isso quando escrevi sobre o seu sensível O Lado Bom da Vida (2013), e continua sendo verdade neste Trapaça. Nas mãos de outras pessoas podia ser um filme de roubo bem genérico e sem personalidade, mas nas mãos de Russel e seu competente elenco torna-se uma divertida farsa.
A trama é levemente baseada no caso real do escândalo Abscam, e é centrada em Irving (Christian Bale), um pequeno comerciante que aplica golpes ao lado da amante, Sydney (Amy Adams). Quando Sydney é pega pelo agente do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper), ela e Irving são obrigados a ajudá-lo a montar um esquema para prender outros golpistas e políticos corruptos. O problema é que Rosalyn (Jennifer Lawrence), a intempestiva esposa de Irving, pode botar tudo a perder.
Mais do que um filme de golpe ou de roubo, Trapaça é um filme sobre construção de identidade e de imagem e como aquilo que projetamos sobre nós mesmos para outros é muito mais aquilo como queremos que os outros nos vejam do que como realmente somos. Seus personagens são pessoas que a todo o momento tentam mostrar algo que não são e vivem suas vidas ao redor da construção de mentiras.

Irving é um homem casado e com filho, mas vive uma vida paralela com sua amante para escapar de sua esposa desequilibrada e manipuladora de quem não se divorcia por medo de perder o filho. Sydney constrói uma nova identidade inteira para si, mas diferente de Irving que usa suas mentiras como escape, ela vive sua fantasia e não tem nada mais além de toda vida falsa que construiu, o que faz cada vez mais desesperada por experimentar “algo real” já que não há nada ao seu redor além de mentiras. O agente Richie também vive uma vida falsa, tem uma noiva com a qual não se importa, provavelmente apenas pela convenção social (estamos nos anos 70) de que alguém da sua idade deve pensar em casar, e prefere se ver como um grande, inteligente e destemido agente de campo que traz justiça e desmascara os corruptos do que como o pequeno burocrata que realmente é, mas diferente dos outros dois acredita piamente em sua visão de si, sem se dar conta de que não corresponde à realidade, algo que será sua perdição.
O elenco é possivelmente o maior mérito do filme ao lado do roteiro bacana cheio de diálogos afiados e bem construídos, potencializados pelo timing dos atores. Christian Bale realiza mais uma grande transformação física, ficando irreconhecível como Irving, compondo com grande atenção aos detalhes sua linguagem corporal e seu sotaque novaiorquino. Amy Adams transforma Sydney em uma figura incrivelmente fascinante, já que sua dissimulação torna quase que impossível percebermos se a personagem está sendo sincera ou se está manipulando todos ao seu redor, indo rapidamente da sedução à fragilidade para conseguir o que quer. Já Cooper confere grande energia ao seu agente federal, em especial quando ele vai mergulhando cada vez mais em suas fantasias (com ajuda de grandes doses de narcóticos) e tornando-se cada vez mais instável. Jennifer Lawrence exibe sua habitual competência como Rosalyn, mas a sensação que fica é que ela está basicamente interpretando a mesma personagem que fez em O Lado Bom da Vida, já que sua dona de casa é tão instável e sem noção quanto Tiffany.
A montagem é outro grande acerto do filme, muitas vezes acompanhando os eventos fora de ordem, seguindo a narração dos personagens, algo que ressalta a comicidade e o absurdo dos esquemas do trio principal. Isso fica patente, por exemplo na cena em que Richie perde a cabeça e agride e seu chefe, o agente Stoddard (Louis CK). Primeiro o vemos gritando com o chefe no telefone e esperamos ver se ele irá mesmo invadir o escritório para bater nele. Ao invés de mostrar o que acontece a seguir, o filme pula para o momento seguinte, nos mostrando Stoddard todo machucado no escritório de um superior denunciando a agressão. Ao vermos o personagem todo arrebentado, isso aumenta a curiosidade e expectativa acerca do que realmente aconteceu e só após o depoimento que o filme nos mostra o espancamento hilário e sem noção (parece algo saído de um filme do Scorsese ou dos irmãos Coen) cometido por Richie.
O filme também é bastante competente em sua recriação da época, tanto nos cenários, quanto nos figurinos e é curiosa a opção da fotografia por uma iluminação que constantemente investe em tons de amarelo e sépia que parecem dar um tom nostálgico e romantizado ao passado retratado.
Os problemas aparecem mesmo quando o filme tenta se levar demasiadamente a sério ao tentar discutir a ética das ações do FBI, uma temática que nunca é discutida de maneira satisfatória, ou da natureza e motivações por trás dos atos de corrupção e se há algo de justificável neles. Vemos isso em especial na cena em que Irving revela a verdadeira natureza do esquema ao prefeito Polito (Jeremy Renner) e ele a esposa começam a chorar dizendo que fizeram aquilo para ajudar a reconstrução da cidade, expulsando Irving da casa. Conforme o golpista sai, olha de volta para dentro da casa e um contraplano o mostra observado pelos filhos de Polito, triste e irritados sobre a escada da casa, quase como se o filme quisesse realmente que nos compadecêssemos e sentíssemos pena do personagem pelo fato de seus motivos para burlar a lei tenham sido aparentemente justos, um expediente demasiadamente sentimentaloide e simplório para lidar com uma questão tão complexa.
Trapaça peca por se levar mais a sério do que deveria, mas ainda assim é um filme altamente competente e uma divertida farsa sobre as ilusões que construímos em torno de nossas próprias vidas.
Nota: 7/10

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