quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Rapsódias Revisitadas – Ensaio de Orquestra


Análise Crítica – Ensaio de Orquestra


Review – Ensaio de Orquestra
Filmado em poucos dias pelo diretor Federico Fellini, Ensaio de Orquestra parte de uma premissa relativamente simples, mas sob sua simplicidade traz em si uma riqueza enorme de leituras possíveis sobre como o diretor usa a Orquestra como uma metáfora para diferentes ideias sobre organização social e conflitos humanos.

O filme se estrutura como se fosse um documentário sobre o ensaio de uma orquestra em um porão de uma antiga igreja que teria uma excelente acústica. Ao longo das entrevistas com os músicos e o maestro, no entanto, conflitos começam a emergir e as coisas rapidamente começam a sair do controle.

É possível entender tudo que vemos aqui como uma metáfora para o comportamento social do ser humano. A orquestra é algo que precisa de algum nível de ordem para funcionar, cada membro precisa desempenhar uma função específica e saber o momento exato em que precisa executá-la. Tudo precisa ser perfeitamente organizado para que o som saia perfeito. Apesar disso, a orquestra também é um espaço de criação e de diálogo, no qual os músicos tem voz ativa e pontos de vista que querem validar. Assim, a orquestra é vista como esse espaço em constante tensionamento entre ordem e desordem, entre coletividade e individualidade. Entre o desejo de viver em sociedade, cooperando com um coletivo e um desejo por individualidade e capacidade de expressão própria.

É dessa tensão que emerge o caos completo na narrativa do filme e, nesse sentido, Fellini parece construir um comentário bastante irônico sobre extremismos no espectro político. De um lado temos um maestro de comportamento tão autoritário que chega a ser caricato, tentando controlar os mínimos aspectos da performance dos músicos. Do outro temos a completa anarquia que irrompe a partir do momento em que os músicos decidem se rebelar contra o maestro e, logicamente, nada funciona durante esse momento de anarquia. Desta maneira, percebemos como nenhum desses modelos extremos de sociedade tem como funcionar adequadamente e como o ser humano vive essa existência paradoxal entre liberdade e controle.

Outra leitura seria a da metáfora para relações de trabalho, já que o trabalho da orquestra e do maestro é constantemente interrompido por um representante sindical que impõe várias condições e regras ao trabalho deles. Essas regras ajudam a conter os excessos do irascível maestro em alguns momentos, mas em outros soam completamente arbitrárias, como que feitas apenas para burocratizar o ambiente de trabalho. É mais uma disputa entre ordem caos tratada aqui com certo senso de humor e exagero, mostrando que sem regras o trabalhador por ser completamente explorado por quem detém o controle sobre ele, mas que regras demais tornam tudo confuso e difícil de prosseguir.

O clímax possui algo de realismo fantástico conforme toda a sala de ensaio começa a ruir e uma bola de demolição (cuja presença não é explicada e nem precisa) simplesmente destrói uma parede e soterra um dos personagens nos escombros. É como se aqueles músicos, tão presos em suas brigas e querelas pessoais fossem incapazes de perceber o mundo ao seu redor ruindo, já que ao longo da trama temos pistas de que algo pode estar errado por conta dos estranhos temores. Aqui, mais uma vez, Fellini parece criticar algum tipo de debate polarizado fechado em si mesmo, que não tem soluções concretas a oferecer e por isso, é, de algum modo, autodestrutivo.

Existem, claro, uma multiplicidade imensa de outras leituras possíveis e é isso que faz Ensaio de Orquestra ficar na memória por tanto tempo ao examinar de maneira irônica os paradoxos e contradições das vivências artísticas e sociais, exibindo as tensões entre controle e caos, entre coletividade e individualidade.

Trailer

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