Tempo de tela
A trama é centrada em Owen (Justice Smith), um garoto solitário e sem senso de si que se torna obcecado por uma série de televisão sobre duas garotas que enfrentam monstros sobrenaturais (pensem em algo como Buffy). Ele encontra uma amiga em Maddy (Brigette Lundy-Paine), que é igualmente solitária e misantropa, mas compartilha com Owen a obsessão pela série The Pink Opaque. O tempo passa, a série é cancelada, Maddy desaparece, mas Owen continua fixado pela série, atraído por seu magnetismo enquanto os anos passam, o mundo parece se mover e ele permanece estagnado.
É uma obsessão que parece nascer como fruto de uma identificação com aquilo que está na tela, mesmo que não se saiba exatamente o motivo. Todo mundo como criança teve uma série ou filme pelo qual se obcecou e formou muito de sua personalidade e o filme reflete sobre esse impacto principalmente por pessoas que não se encaixam em padrões heteronormativos e que perceberam não estarem sozinhos por conta de alguma produção audiovisual.
É o que acontece tanto com Maddy quanto com Owen. Ela é lésbica e possivelmente não binária e parece ser atraída pela série justamente pela sensibilidade queer que permeia a produção, ainda que a série em si não tenha nada explícito. Owen, por outro lado, não tem um senso de si construído, se definindo apenas por ser fã da série, uma identidade que vai desvanecendo depois que a série acaba e ele se encontra à deriva.
Realidade ficcional
O filme constrói bem um senso de realidade fraturada, com saltos bruscos no tempo que tiram o senso de continuidade e cenas que muitas vezes já começam com algum personagem no meio de uma ação. A fotografia é outro aspecto no qual esse clima é construído, com paisagens sombrias e dessaturadas contrastando com fortes luzes neon em tons de roxo, rosa ou azul ou vermelho. O uso da luz e da cor faz tudo parecer como se estivéssemos na subjetividade de Owen ou transitando por algum delírio confuso no qual não sabemos onde realidade, ficção e imaginação se cruzam.
Visualmente a produção também é criativa nas cenas de The Pink Opaque, evocando uma estética de produção em VHS que soa como uma produção de baixo orçamento de TV estadunidense da década de 90, mas dotando a série dentro de um filme de um relativo grau de estranheza, como um cruzamento entre produções antigas da Nickelodeon e do David Lynch.
Justice Smith é competente em apresentar Owen como alguém à deriva na vida e cuja obsessão com a série parece ser a única coisa que lhe dá algum conforto ainda que não saiba bem o motivo. Eu imagino que muito do fluxo deliberado da trama tenha a ver com esse sentimento de errância do personagem, no entanto, por vezes esse vaguear soa como uma trama perdida no que quer dizer. Há também a questão de que toda a alegoria para transgeneridade que o filme constrói soa relativamente opaca.
Sim, as pistas estão ali desde o início quando um Owen criança corre por baixo de uma lona com as exatas cores da bandeira trans ou as constantes metáforas visuais e em diálogos (como o intenso monólogo de Maddy) sobre a necessidade de se deixar morrer para poder renascer estão ali indicando que a falta de um senso de identidade em Owen se relacionam com um senso de estar aprisionado no próprio corpo, de viver como uma fachada vazia. O horror do filme reside nesse senso constante de não pertencimento, ao seu corpo, a sua vida e como tudo ao seu redor soa tão falso como uma série de tv tosca de décadas atrás. Tudo está ali, mas de maneira tão cifrada, tão subjacente que é possível que muita gente sequer perceba que esse é o tema central da produção. Claro, ninguém gosta de um texto didático que age como se quisesse palestrar para sua audiência, mas aqui o filme parece mais interessado em cifrar seus sentidos do que comunicá-los.
Assim, Eu Vi o Brilho da TV é um interessante exame sobre a construção de
um senso de identidade, usando de sua abordagem surrealista para criar o senso
de aprisionamento experimentado por alguém que em algum nível percebe que o
próprio corpo não lhe pertence.
Nota: 7/10
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